domingo, 25 de outubro de 2009

hole

Desde cedo quis ser Agricultor. Achava maravilhoso o poder cultivar, fazer crescer do chão, verde e colorido, as vidas responsáveis por nossas vidas. Tanto sonhou em alimentar os filhos (queria três) com o produto do próprio esforço, manter uma situação economicamente estável no lado ainda claro do estado. Uma efeverscência admirável, a que transpirava dos poros de Roman, quando jovem, na antiga Barena. Logo devastada pela perda de dois alicerces vitais: o irmão mais velho Robert, exímio químico, cuja estrada teve término antes do terminal San Pietro, na curva Maranata; e a metalúrgica da família, fechada pelos impostos não pagos pelo pai, talvez. Nunca ficou muito claro, mas o que importava? Nada mais. A família, agora uma clausura sem o irmão e a renda, declinava na ladeira da angústia e Roman sentia todas as escoriações, mais as dos parentes que as próprias. Havia visto uma única vez a mãe chorar, no enterro de Kiko, o cachorro. Os sorrisos autenticavam a família como imbatível, problema algum era capaz de rachar tais elos de sangue, carne e terra. As lágrimas maternais tornar-se-iam rotineiras, o pai, já não mais tão forte, trancou-se num silêncio mais barulhento que os berros diários da mãe. Só se via o pai com a calculadora, e o dinheiro guardado que se esvaía e não retornava. Seria factível o reerguimento familiar? Roman não mais sonhava com hortas, lavouras. Desejava, mais que tudo, reflorescer a felicidade na família, ajudar o pai nos trabalhos, acarinhar a mãe enquanto o almoço fosse preparado. Mas não os deram trabalho. Ao pai por não ser tão jovem, a Roman por ser jovem demais. A fome acenava da varanda ao desespero já instalado em todos centímetros da casa. Roman perlustrou por toda a cidade em busca de emprego digno e recompensador; nada. O vazio no estômago esmagava a mente pútrida, quando decidiu mandar a dignidade ao inferno. Foi preso na terceira vez, ao pôr alimentos na bolsa, num supermercado, sem autorização prévia ou pagamento à vista. Numa jaula minúscula, com mais seis répteis, pensou em suicidar-se para reencontrar Robert, quem sabe estivesse bem, alimentado e rico. Desistiu, não havia forças.

Em casa, dois corpos boiavam à beira do abismo.

domingo, 18 de outubro de 2009

ao medo de perder (-te).

o fim da madrugada trouxe
ao lado do sol azedo
mal-estar

espanto-me com a fragilidade que me transformei
vidro rachado
ao me entregar à tua existência
como se fosse a minha
não mais sou único
meu espírito abriu mão de uma parte (grande parte)
para encaixar o teu e unir
nossos laços carnais em além
o amor que transgride o táctil

atrofiado sem tua respiração por perto
apelei ao sono tranquilidade
que não veio
mas, sim, distância latejando os sentidos
não consigo afirmar em que cômodo da casa estava
quando te liguei para retornar a mim
a lucidez tecendo meus pelos
eu voltaria ao normal
se não fosse a irritação

o tremor na tua voz
eu mais que ouvi, vi
a dolorosa reação do outro lado da cidade
perfurando-me o peito de mágoa
outra vez mais perdido
outra vez menos sereno
suplicando ao Pai, ou aos Tios e Avôs
que o ferimento seja superficial

precisamos sentir o vento puro em meio ao ar enegrecido.

as pequenas fúrias geram o furacão
a que todos temem adentrar
aquele que arranca Maria de João
sem vestígio, só cicatriz perpétua
cuja fisgada anestesia alguma ameniza.