terça-feira, 29 de junho de 2010

training.

Tinha um beija-flor tatuado na nuca. A ave beijava o sobrenome, o néctar, as asas como hélices, estáticas no desenho. Eram pretas, as asas, o beija-flor, a flor, a penumbra íntima que alcançava a arte no corpo branco e rubro de Simplícia. Lia um livro volumoso, a domadora de beija-flores, a cabeça parecia magnetizada pelo “O Idiota”, de Dostoiévski. Porque era autor da moda, a universidade tinha grupos de estudos literários, Fiódor era um dos deuses aclamados, entendo o porquê mas discordava veementemente, sempre os de fora tinham ouro nas veias, Bandeira fora maior, Lispector, Drummond, Graciliano. Não, não era xenofobia, porém sempre priorizei nossa produção, célebres pensadores da mesma pátria-canil cujas chagas e conquistas eram tão belamente narradas. Dostoiévski estava um degrau acima de muitos, mas na escadaria inferior de tantos outros. Devo ter pensado alto, em algum momento, percebi seu ar de reprovação a me metralhar, os dois olhos de limão em brasas, ardendo e cuspindo, O discernimento é uma glória, não é mesmo?, E como é!, eu ria maliciosamente, ela em pensamentos me esfaqueava, não há coisa mais deliciosa que raiva feminina. Abracei-a como quem brinca, e eu não brincava, mas jamais fomentava discussão com Simplícia, lembro-me de apenas um forte desentendimento à porta de uma casa de shows. A babel me tonteava tão quanto um furacão, havíamos usado LSD na mesma noite, horas antes, ela andava sobre águas e sorria sem pudor, a alça da blusa arriada, eu ouvia mosquitos, aranhas, as patas saindo pelo meu nariz, eu não sei se gritava para mim ou para os outros, mas lembro claramente de sua imagem, vociferava contra mim, brilhante e esverdeada, apontava-me o dedo como quem aponta uma arma carregada, eu tremia e ria e chorava, tinha vontade de arrancar a língua. Terminamos a noite ali, um pouco mais à frente, os dois deitados na areia imunda de Boa Viagem, os riscos que faziam rir; assalto, estupro e tubarão. Nadamos nas ondas frias, numa das noites mais quentes do ano na cidade. E em mim.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Como alimentei os vermes.

A ilha anoitecia brumosa
pouco se via, mesmo à luz da lua
defenestrado e semi-cego, apanhei uma garrafa na adega
escutava talheres se suicidarem às minhas costas
o chão da cozinha em bernarda
eu sabia onde Ferro enterrara a droga, mas relutei
em minha posição de platelminto me mantive
calado, débil
e rastejante.

Ao afundar os pés na areia chorosa da noite
um reboco meu desgarra
cedo à gravidade, e deito como quem morre
seria, talvez, meu atestado de óbito
permanecer, fugir, arrancar-me a vida
a impossível alforria que voava para outro hemisfério
e lembrar
que tudo começou há cinco meses
cem gramas, um final de semana
para minhas pernas serem alvo de serrotes
já sentia a fetidez da necrose
infestando minhas narinas vermelhas
o pó do início
em pó no final.

As imarcescíveis lembranças de Dalva golpearam-me como facas
ao lugar de dor, uma minúscula esperança
de sorrir uma vez mais
esparramar minha boca por sua pele
porque a simplicidade ocupava nossas tardes tão manhãs
as ondas trêfegas quebravam surpreendentemente calmas
e a cada visita, carregavam-me um músculo
vou me entregar, Pai
ao departamento oceânico dos desfalcados
prefiro uma partida analisada, por mais angustiante
juro como vou
não é preciso se levantar, posso rolar até o definitivo encontro com as águas
e deixar.

Além, sobre os aviões, poltronas de nuvens
aquém, sob os passos, correntes eletrificadas
quem semeou a realidade póstuma?
um mudo
um medo
como o que sinto nesta escuridão infinita
desistindo da ideia covarde
meu celular vibra, meu coração
a mensagem de Ferro diz que,
se honro os testículos,
devo retornar imediatamente à casa-purgatório
o vinho se esgota
e esgotado refaço o caminho que há pouco fiz
ao contrário.

Aberta a porta
de incertezas e questionamentos
em segundos tornou a fechar
como as automáticas assim fazem
quando ninguém por perto está.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

pedaço solto.

Fortunato transformou-se num terçol sem cura. Sua presença me incomodava tal como uma rasura em documento original, corretivo algum seria capaz de amenizar o martírio, as orações não surtiram efeito. Deus sabe o quanto pelejei, promessas para cada santo, foi meu erro este fuzuê de preces que apenas pediam milagres, nunca agradecimento. Eu assistia à decadência dele, inevitavelmente a minha, mas fiz o que fiz pelas crianças, eu não teria a coragem de abandoná-lo naquele estado, se fôssemos só nós dois. Perco as contas dos móveis espatifados no chão, das dezenas de lavagens do banheiro por semana, para tirar a catinga de vômito, as roupas cagadas. Enrouquecia de tanto chorar, eu não ouvia mais música, não comprava mais vestidos nem broches para enfeitá-los, Fortunato falecia aos poucos e era à minha volta que o caixão se fechava. Suas palavras, antes tão doces e excitantes, tornaram-se infrutíferas, não havia sabor, apenas uma azia cíclica, da cachaça pra ele, dele pra mim. Cheguei ao ponto de tapeá-lo. Ele para mim nunca levantou um dedo, estivesse sóbrio ou embriagado, e me envergonho pela agressão, minha cabeça fazia manobras e as ideias escapuliam sempre que eu passava as mãos nos cabelos. Perdi a compostura, ao vê-lo agarrado com uma putinha de dezenove anos, quase em frente de casa, dançando com a mão dentro de sua saia, doem-me os nervos só de lembrar. Dei nele e nela, empurrei-a rua afora e o pus pra dentro, embaixo do chuveiro. Foi o ápice, como dizem, ali o divórcio me pareceu tão óbvio e necessário que tive nojo de mim pela burrice, ou cegueira, ou esse capuz invisível que cobre os sentidos dos apaixonados. No outro dia de manhã já estava na casa da minha mãe com Alfonso e Amélia sob as asas, alojamo-nos no meu antigo quarto, e eu me senti num lar como nunca. Fortunato ligou todos os dias durante um mês, quis ver os filhos, mas meu desgosto era tanto que me passei de juíza e o proibi de visitá-los. E quanto mais eu via sua silhueta se desfazer ao dar meia volta do casarão de minha mãe, mais aquele aperto do peito das viúvas me assolava, fazendo-me sonhar com a ressurreição do marido morto. Pois aquele do qual eu sentia falta não sobrevivera aos dias tempestuosos, encontrava-se enterrado e em ossos, vivo apenas nas pueris lembranças de quando o convívio cheirava a leite condensado e pipoca. Tranquei-me em mausoléu e assim respirei por mais algumas semanas umbrosas, longe de Fortunato e do mundo exterior. Graças a uma pneumonia de Amélia presenteei com novos ares meus pulmões, ficamos no hospital por dois dias, o corpo aos poucos recuperou o peso, cimentei forças e até hoje continuo, sem arrependimentos nem saudade de nada. Só em algumas noites mais demoradas um frio súbito sussurra à nuca e a presença de Fortunato me parece materializada junto a mim. Então durmo.

domingo, 13 de junho de 2010

chapter.

Esperei do lado de fora, sentado numa espaçosa cadeira rubra, em frente à recepcionista do gabinete do Senador. Era de madeixas democráticas, partes louras oxigenadas, outras de um negro natural charmosíssimo. Nas pálpebras, uma tintura violeta, clara e humilde, como quem finge não chamar atenção, que combinava perfeitamente com duas rosas postiças decoradas na sua mesa em L. Atendia aos telefonemas com delicadeza cinematográfica, declamando bom dia como um sopro, em suspensão, meus olhos salivavam ao som daquela melodia fulminante. Serenamente atordoado, lutei contra a impulsão que pulsava dos calcanhares ao crânio, aquela vontade quase assassina de olhar sem intermitências o decote desafiador. Poder repousar minha carne naquela pele de veludo, qualquer pedaço que fosse, e meus testículos exumariam paz. Apanhei a agenda da bolsa, subitamente, e comecei a escrever sem controle, como um psicógrafo. Não faço a menor suspeita do conteúdo do texto por, em seguida, desmatar a folha e transformá-la em bola, arremessada no cesto de lixo mais próximo. Trêmulo como uma bandeira ao alto, redirecionei a vista à miragem divina, me encarava por cima do monitor, dois faróis de xenon incandescentes, permaneci estátua, aceita uma água, café, eu não tinha respostas, alguém por mim disse sim à primeira opção, e ela levantou-se, sincronizada com meu pênis. Dobrei as pernas, ela curvada enchendo o copo, a cueca me sufocando, obrigado, ela abriu um sorriso acanhado e vadio, enquanto de um só gole esvaziei o vidro cilíndrico. Perguntei onde era o banheiro, querendo chamá-la comigo, no final do corredor, que percorri me equilibrando nas paredes. Fechei a porta de chave, sentei vestido no vaso e respirei. De olhos fechados, fundo. Confesso que a ideia de masturbação me visitou, mas como um absurdo, eu estava em horário de trabalho e, se fosse para gastá-lo com algo do tipo, que fosse dentro da recepcionista. Enxaguei a cara, ainda podre. Ao retornar à sala, o Senador havia saído, estava ao lado da porta principal me aguardando para o início da viagem. Vamos, quem é coxo parte cedo, e girou a maçaneta, ela acenava, não para mim, mas fui recíproco ao meu desejo. Ela então pôs o olhar em mim e mostrou a dentição, até logo, eu repeti, teria que rever aquela mulher, marcar um jantar, fodê-la num motel além das minhas despesas, valeria a pena. Vinho, bobó de camarão e sua boceta morna a me abrir o apetite. Viajei imaginando a volta, uma orca encalhada na cabeça, tanto peso que adormeci. Na loteria dos sonhos, acertei meus pais no aeroporto, vibrávamos o alcance de algum objetivo jamais esclarecido durante a quimera. Papai gargalhava fumaças e tosses, de óculos escuros e com o terno branco que sempre apreciei, enquanto mamãe gesticulava como um professor, relatando histórias da minha infância de modelo. Eu ria como menino, sem precaução no volume, e eles não me censuravam, apesar dos olhares reprovadores em volta. De repente uma voz remota brotou no ar, vocês precisarão pegar um atalho, a estrada foi interditada há pouco, era um policial rodoviário. Acordei babando, o motorista do Senador já entrara no caminho de barro. Aproveitou para uma pausa. Mijar.

terça-feira, 8 de junho de 2010

frag.

O apartamento dialoga comigo. Pede faxina há duas semanas, desde a última vez que Mônica prestou seus serviços e retirou alguns gramas de grude dos azulejos, imunizando-os com uma cera de cheiro angustiante que compete, pau a pau, com os trajes de um gari após um longo dia de trabalho. Certos produtos de limpeza são definitivamente sarcásticos. Parasito pela geladeira em busca de algo que tranque a boca do estômago, cujos resmungos parecem sem fim, quando a mente envia a informação que não se tem mais nada a fazer. Comer é paliativo à inércia, intransponível como uma cordilheira infinita, nestes dias. Pequeno alento ao alpinista trêmulo, ainda na metade do caminho, sem forças, como se escalasse pela décima vez no mesmo dia. Não há tantas opções, minha negligência interfere em casa, fora, dentro do refrigerador. Menosprezei o salubre zelo sempre presente em minha personalidade, por mais tóxica e barulhenta nas horas dos torpedos unidirecionais. Nunca fui de imitar mudo, aguentar pressões alheias de lábios cerrados, a cada explosão estrangeira minha belicosidade jorrava granadas para todos os lados, não distinguindo o inimigo do aliado, ou do indiferente, como em toda guerra. Com a brancura na barba, e depois nos remanescentes fios da cabeça, moderei o ímpeto ao combate. Continuei zeloso, de menino até hoje, órfão, mas hoje, hoje me vejo despedaçado, procuro os detritos de meus antigos hábitos e nada vejo. Uma catarata de lembranças mescladas mensura a sobra, o quanto daquele eu longínquo ainda dorme em meu espírito; são faíscas, pequeninos blocos de temperamentos, opiniões, visões de mundo. Meu pavor de grandes embarcações é genuinamente meu? Quantas apreciações e desprezos foram formados com o auxílio de sentimentos externos aos que mantenho? Comecei a fumar aos trinta e nove anos. Fui pai antes de viciar-me no tabaco, grande exemplo, e meu primogênito diz, ou costumava, ser culpa dele, cuja vinda ao mundo teria influenciado tal hábito. Como estará Alfonso, céus, perdi também as contas dos anos, creio que faz cinco sem vê-lo, abraçá-lo tapeando as asas das costas, atitude tão usual de um pai. Noto esta febrícula repentina sempre que penso em meus filhos, um ardor sutil mas sufocante, o tempo realmente passou, o meu, ou daquele em que eu estava habituado a ser, comparo-me a determinado veículo cujo combustível não mais se utiliza. Em extinção, fadado a um fim silencioso, despercebido, num distante ferro-velho putrefato, onde apenas as ferrugens indiciam de que eram feitos os irreconhecíveis objetos ali entulhados.