sexta-feira, 18 de junho de 2010

pedaço solto.

Fortunato transformou-se num terçol sem cura. Sua presença me incomodava tal como uma rasura em documento original, corretivo algum seria capaz de amenizar o martírio, as orações não surtiram efeito. Deus sabe o quanto pelejei, promessas para cada santo, foi meu erro este fuzuê de preces que apenas pediam milagres, nunca agradecimento. Eu assistia à decadência dele, inevitavelmente a minha, mas fiz o que fiz pelas crianças, eu não teria a coragem de abandoná-lo naquele estado, se fôssemos só nós dois. Perco as contas dos móveis espatifados no chão, das dezenas de lavagens do banheiro por semana, para tirar a catinga de vômito, as roupas cagadas. Enrouquecia de tanto chorar, eu não ouvia mais música, não comprava mais vestidos nem broches para enfeitá-los, Fortunato falecia aos poucos e era à minha volta que o caixão se fechava. Suas palavras, antes tão doces e excitantes, tornaram-se infrutíferas, não havia sabor, apenas uma azia cíclica, da cachaça pra ele, dele pra mim. Cheguei ao ponto de tapeá-lo. Ele para mim nunca levantou um dedo, estivesse sóbrio ou embriagado, e me envergonho pela agressão, minha cabeça fazia manobras e as ideias escapuliam sempre que eu passava as mãos nos cabelos. Perdi a compostura, ao vê-lo agarrado com uma putinha de dezenove anos, quase em frente de casa, dançando com a mão dentro de sua saia, doem-me os nervos só de lembrar. Dei nele e nela, empurrei-a rua afora e o pus pra dentro, embaixo do chuveiro. Foi o ápice, como dizem, ali o divórcio me pareceu tão óbvio e necessário que tive nojo de mim pela burrice, ou cegueira, ou esse capuz invisível que cobre os sentidos dos apaixonados. No outro dia de manhã já estava na casa da minha mãe com Alfonso e Amélia sob as asas, alojamo-nos no meu antigo quarto, e eu me senti num lar como nunca. Fortunato ligou todos os dias durante um mês, quis ver os filhos, mas meu desgosto era tanto que me passei de juíza e o proibi de visitá-los. E quanto mais eu via sua silhueta se desfazer ao dar meia volta do casarão de minha mãe, mais aquele aperto do peito das viúvas me assolava, fazendo-me sonhar com a ressurreição do marido morto. Pois aquele do qual eu sentia falta não sobrevivera aos dias tempestuosos, encontrava-se enterrado e em ossos, vivo apenas nas pueris lembranças de quando o convívio cheirava a leite condensado e pipoca. Tranquei-me em mausoléu e assim respirei por mais algumas semanas umbrosas, longe de Fortunato e do mundo exterior. Graças a uma pneumonia de Amélia presenteei com novos ares meus pulmões, ficamos no hospital por dois dias, o corpo aos poucos recuperou o peso, cimentei forças e até hoje continuo, sem arrependimentos nem saudade de nada. Só em algumas noites mais demoradas um frio súbito sussurra à nuca e a presença de Fortunato me parece materializada junto a mim. Então durmo.

Um comentário:

Madre disse...

Gostei muito....
Bjs ao meu poeta.