domingo, 30 de maio de 2010

abre los ojos.

Apedrejador como a alma
O rancor instalou-se em mim
Triturador de amor sem fim
Cujo tambor jamais se acalma.

Estilhaços caem sem ti
Conturbados, cem pedras no caminho
Gigantesca coroa de espinho
Como agulhas, em choro, senti.

Nas orelhas, tímpanos rasgados
Sal de lágrima na boca seca
Em chamas o peito, interminável enxaqueca
Panturrilhas e pés afundados.

A farta desnutrição das vinte e quatro costelas
À vista, como ponto turístico
Meus sorrisos tão característicos
Perderam-se à procura dos dela.

Onipotente brancura de luz
Agasalho da minha escuridão
Ao faminto, uma migalha de pão
Que o esôfago ao estômago conduz.


Tolice.

Menti em cada sílaba desses versos inúteis, estúpidas rimas pré-fabricadas, não há um fio de náilon verdadeiro nessas linhas patéticas. A verdade é que tento transparecer algo inexistente, o maior amor do mundo, o maior sofrimento do mundo, lamentações insignificantes. Sigo meu déficit, que às vezes chamo vida, tentando arrumá-lo como alguma história digna de ser contada; ninguém leria, se soubessem o quanto teatralizo, se só pudessem enxergar a vaidade, somente ela, enroscada em cada vírgula posta cautelosamente. O magnífico da literatura é poder transformar em vulcão ativo uma simples chama de vela. E, gostem ou não, há algum brilho no meio disso tudo.

domingo, 23 de maio de 2010

dog day

deitado abro os olhos, mais uma vez
diluído entre insossos ossos descarnados
dó do sol chamejante
deixar-se atrasar, jamais!

devorado o café da manhã, o caminho
diante de outros lutadores, bater continência
dois, três latidos de idolatria
dragões de gelo nos aguardam flutuantes
dejetos atirados em nossas cabeças

deblaterarão os de patas fracas
desistam destas tolas ideias!
domaremo-nos, então, pelos caninos
desânimo qualquer deve ser combatido
domingos assim são
durante os tempos de fome

dóceis como labradores
driblamos as feras de asas
detectando o tesouro à venda
desde cedo é preciso ladrar, por aqui
dar aos caídos a lambida terapêutica
diariamente, para não virar cachorro-quente

dinamitar as estruturas impostas
desintoxicação genuína do espírito
deus pode ser bom, mas está longe
dúbio como um parlamentar solidário
destro, canhoto, ou qualquer que seja

duelos vencidos, barrigas tranquilas
diarréias tão comuns já não mais doem
dentes perdidos reforçam a dignidade
de sobreviver dia após dia.

terça-feira, 18 de maio de 2010

fragmento da obra futura - part III

O câncer permaneceu, mesmo o tumor curado, careca à mostra. Uma sensação de peso, os olhos arriados, como se carregassem lenha, talvez um leproso identificaria-se. No hospital, ao menos existi, ainda não tinha esse aspecto de embrulho, dormia profundamente em algo não tão inóspito quanto esta cesta de concreto onde sobrevivo. Sinto-me como um disquete. Nem insultos me direcionam, a azáfama diária ao inverso, eis minha subcondição; uma verruga ocultada. Aposentei-me da rádio, dos ouvintes, da troca de palavras de peito aberto, via ondas sonoras, a solidão veio como um cometa e estagnou. Logo eu, das piadas sempre afiadas. Logo eu, sempre rodeado pelas mais belas mulheres. Logo eu, Deus. O que mais me assusta é esta demoníaca imprevisibilidade. Por mais duvidosa e cheia de rios, meu pragmatismo tornara a vida estável, de pouca surpresa, tudo como o programado. A doença tumultuou tais estruturas até o desmoronamento por completo, deixando-me sem teto e chão, num precipício de inércia e memórias reluzentes que infestam a massa encefálica de imagens mal editadas. Hoje reduzo-me às vísceras. O vurmo lânguido que escorre como quem rasteja, moendo a mucosa do estômago.

Pelo silêncio, a noite deve estar no fim. Minhas décadas de angústia com o tempo, o deadline por cortar-me a cabeça, faz parte da antiguidade. Inexistem relógios dentro de casa, tenho ideia das horas pelos programas de tevê e pelo som das ruas. Quando os garotos cessam a gritaria da diversão é por volta das nove da noite. Hoje eles não desceram, semana de prova, ou por castigo, talvez. Por isso, meu desnorteio. É inútil ter tal noção quando encontro algum é marcado, filhos não sentarão à mesa de jantar e a manhã de amanhã passará como um sopro. Pesado. De fato, estou velho, a reclamação parece não ter ponto, mas tudo me dói muito, porra. Esta labirintite social, a filariose de vazio, desmaios e vômitos invisíveis acontecem independentemente da minha força de vontade em continuar. Eu quero, viver até os noventa, sofrer com a morte de ídolos de sempre, Woody Allen tem minha idade, quem viverá mais? Espero que eu, mas o mundo discorda, justamente. Gostaria que morrêssemos no mesmo dia, entrássemos juntos no outro lado, ele empurrando minha cadeira de rodas ao relembrar suas musas, a filmagem de Zelig, eu sorriria encantado. Será que já faleci? Li, em algum texto espírita, que certas almas, por algum tempo, não tem a ciência da própria morte e permanecem vagando entre os mundos. Eu não acredito que morri e apenas agora percebi, agora, fitando esta porta de madeira mofada, coberto até a cintura por um lençol sujo, não pode ser. Os carros ainda maltratam o asfalto, preciso tirar a dúvida, ligo para o porteiro?, a cozinha é mais perto. Ouço a tevê da vizinha, sempre chega tarde, posso interfonar. A cozinha é mais perto.

domingo, 9 de maio de 2010

madre.

não escrevo para ninguém
frase batida
tida como simplicidade maquiada
admito, de rosto nu
hoje direciono minhas composições a ti
dos ouvidos sempre abertos
das mãos ávidas por me acarinhar
cujos clamores me doem como uma tesoura recortando a gengiva
tu que me proteges
um edredom blindado
que estia a tempestade para o molhado não me gripar
hoje,
com extrema dificuldade e cautela,
tento desinibir os dedos
e te presentear adequadamente.

quantas vivências
guerras e carnavais
minha miopia atenuada a cada ensinamento
por mais avinagrado
se hoje evoluo, é porque foste a escada
se diferencio o postiço do coração
tudo cabe a ti
suportar atrocidades com leveza na alma
que dificuldade é te escrever
o sono embaralha
uma rajada de palavras sem sentido tentam escapar
seguro e amarro como um cavalo áspero
a ordenação do que necessita ter vida
carregar ao concreto uma infinidade de sensações.

hoje é teu dia
todos são, aliás
mas hoje foi o escolhido por alguém
pelo sistema
não interessa
hoje é preciso não deixar-se esquecer da beleza
do teu espírito
e teu esplendor


mãe,


mais que um elogio
aqui agradeço o privilégio de ser um filho teu
de ter o eterno aconchego do ventre materno
poder rir, chorar, gritar
e ser compreendido.

meu amor não é de guardanapo.

é atmosférico,
e transcendental.

por todas as vidas.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

fragmento da obra futura - part II

Entregue nessa balsa à deriva que é o cotidiano dos homens de idade, pairo sobre os cocurutos estagnados de uma juventude conformista em 3D. Sobrevoo, como uma muriçoca sem muito tempo, à procura de veias palpitantes que arriscam o próprio sangue por ideais ridicularizados ou meramente incompreendidos por milhões. O universo gira como um carrossel desgovernado, a revolução vem dos céus, das nuvens carregadas, do útero dos vulcões convulsivos, a terra trêmula duela contra as forças humanas que lhe privaram a liberdade de antes. Muito antes, quando a sinfonia das gotículas do mar era espetáculo único. Pardais não se perdiam, as pintas das onças tinham mais cor, baleias jamais encalhavam, a chuva era sagrada e sol nenhum mutilava geleiras por vingança. Hoje olho pra cima e sinto como se a esfera terrestre estivesse por se arrebentar. A gravidade nunca pesou tanto. Não é questão de velhice, reclamação de avô. Morro dia a dia, lentamente como um fumante, e o planeta parece ter me dado as mãos e desfalece junto a mim. Eu sei, ainda não sou bobo, a pele é mais sensível nesses momentos, mas os raios solares investiram em material bélico. Quando saio para caminhar, nos dias em que minha caçula não inventa de transar com o namorado, presencio claramente o bombardeio do astro maior. O centro do universo. Complexo de superioridade é, sem sombras de dúvidas, um dos males do século. Não só deste, permitam-me a correção; de todos até então. Júlio César, Alexandre, Nietszche, aquele moço de Titanic. À tarde era rei do mundo, pela madrugada virou gelo. E afundou. Ele e o Titanic. Agradeço aos ensinamentos da vida por ter levado um soco certeiro ao ousar dizer que era o melhor no futebol da vizinhança. Como uma bola de carne, a mão esquerda de Agenor. O gol mais belo que o caruaruense fizera em todos aqueles jogos. Jamais repeti tais palavras, tanto para o esporte quanto para qualquer atividade que viria realizar. De novo. Esses devaneios estão cada vez mais constantes. Não consigo sorrir sem resgatar do passado episódios que tornam o presente mais suportável.


Ontem à noite conversei com duas árvores. Relembrávamos, com nostalgia e umidade nos olhos, os bons tempos dos dinossauros, postergados quase sem rastro pelas eras futuras.