terça-feira, 18 de maio de 2010

fragmento da obra futura - part III

O câncer permaneceu, mesmo o tumor curado, careca à mostra. Uma sensação de peso, os olhos arriados, como se carregassem lenha, talvez um leproso identificaria-se. No hospital, ao menos existi, ainda não tinha esse aspecto de embrulho, dormia profundamente em algo não tão inóspito quanto esta cesta de concreto onde sobrevivo. Sinto-me como um disquete. Nem insultos me direcionam, a azáfama diária ao inverso, eis minha subcondição; uma verruga ocultada. Aposentei-me da rádio, dos ouvintes, da troca de palavras de peito aberto, via ondas sonoras, a solidão veio como um cometa e estagnou. Logo eu, das piadas sempre afiadas. Logo eu, sempre rodeado pelas mais belas mulheres. Logo eu, Deus. O que mais me assusta é esta demoníaca imprevisibilidade. Por mais duvidosa e cheia de rios, meu pragmatismo tornara a vida estável, de pouca surpresa, tudo como o programado. A doença tumultuou tais estruturas até o desmoronamento por completo, deixando-me sem teto e chão, num precipício de inércia e memórias reluzentes que infestam a massa encefálica de imagens mal editadas. Hoje reduzo-me às vísceras. O vurmo lânguido que escorre como quem rasteja, moendo a mucosa do estômago.

Pelo silêncio, a noite deve estar no fim. Minhas décadas de angústia com o tempo, o deadline por cortar-me a cabeça, faz parte da antiguidade. Inexistem relógios dentro de casa, tenho ideia das horas pelos programas de tevê e pelo som das ruas. Quando os garotos cessam a gritaria da diversão é por volta das nove da noite. Hoje eles não desceram, semana de prova, ou por castigo, talvez. Por isso, meu desnorteio. É inútil ter tal noção quando encontro algum é marcado, filhos não sentarão à mesa de jantar e a manhã de amanhã passará como um sopro. Pesado. De fato, estou velho, a reclamação parece não ter ponto, mas tudo me dói muito, porra. Esta labirintite social, a filariose de vazio, desmaios e vômitos invisíveis acontecem independentemente da minha força de vontade em continuar. Eu quero, viver até os noventa, sofrer com a morte de ídolos de sempre, Woody Allen tem minha idade, quem viverá mais? Espero que eu, mas o mundo discorda, justamente. Gostaria que morrêssemos no mesmo dia, entrássemos juntos no outro lado, ele empurrando minha cadeira de rodas ao relembrar suas musas, a filmagem de Zelig, eu sorriria encantado. Será que já faleci? Li, em algum texto espírita, que certas almas, por algum tempo, não tem a ciência da própria morte e permanecem vagando entre os mundos. Eu não acredito que morri e apenas agora percebi, agora, fitando esta porta de madeira mofada, coberto até a cintura por um lençol sujo, não pode ser. Os carros ainda maltratam o asfalto, preciso tirar a dúvida, ligo para o porteiro?, a cozinha é mais perto. Ouço a tevê da vizinha, sempre chega tarde, posso interfonar. A cozinha é mais perto.

2 comentários:

Unknown disse...

Vai publicar quando?

Afense disse...

Faço minhas as palavras de Alexandra