quinta-feira, 27 de agosto de 2009

peAce

Quantas fisgadas fazem o amor? Meticulosamente doloridas, sentidas mais pela alma do que pelo próprio corpo. D'onde vem o sangue borbulhante? Sem corte ou arranhão de criança, cujas veias ameaçam escapolir dos braços e do restante. Sabe quando o coração inverte de função com o cérebro? E, no comando, exige abrigo? Abrigo que só ela fornece ao aprisionar minhas mãos nos quadris, rigorosamente dilacerando o controle enquanto o peito treme e aquece. O equilíbrio do meu universo umbilical depende, sobretudo, da presença. Dela. Como a gravidade é para a Terra. E perdendo a noção de dia e noite, entrelaçar pólos sem castigar as leis dos hemisférios.

Não há nada semelhante ao privilégio de compartilhar vidas. Uma na outra, acesas à escuridão da noite, onde o silêncio dos que dormem é contestado por nossas respirações ofegantes e unhas que arranham. O couro cabeludo, a pele arrepiada, membros ensopados pelo suor revelador dos amantes. E o mundo é esquecido, nada além da porta importa; a paz ininterrupta.

Enquanto houver o mar, amor não faltará destas mãos que a ti tremulam.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Indelével

Submerso no quarto-chaminé, apodreci os olhos ao tentar enxergar pelas cinzas. O maço quase vazio, restando apenas dois dos vinte, pareceu-me tuas pernas semi-abertas, suando a cama de presença e amor. Qualquer cavidade recorda-me às tuas, furtivas insígnias que devastaram a longíqua suavidade dos meus atos (como a nicotina). Ao recuperar a lucidez, desliguei a tevê, enxaguei os olhos e evitei os pensamentos virulentos que costumam aterrissar quando os ares se acalmam. A relutância humana estraga as relações e decepciona os que acreditam, ou tentam, no convívio amistoso. Jamais entenderei como o paraíso dos amantes pode tornar-se em algo tão sulfúrico, tão incolor quanto as ruas por quais me rastejo rotineiramente. Deito novamente. Músculos rebeldes rejeitam meus comandos e da cama não me levanto, meu braço é o lençol desforrado que expele o odor da minha matéria inerte. Os postes se apagam, já é dia e eu não consigo clarear a vista. Buzinas matinais cumprimentam o sol que se espreguiça, a cidade boceja ao meu lado. As nuvens de Recife, as mais límpidas entre as capitais nacionais, se movem com a leveza habitual dos céus nordestinos. Consigo, enfim, desprender-me da cama e, resgatando as moedas debaixo do sofá, junto dois e setenta para comprar um novo maço. O elevador em manutenção me exigiu algum esforço para descer os quatro andares pelas escadas, sem corrimão por medo da H1N1. Espirros nunca assustaram tanto, nem o toque. Os hipnóticos degraus carregavam-me pelos pés rachados de viver, dois pobres instrumentos cuja função árdua merece todo mérito do mundo. Pétreo como um ditador, marchei à banca mais próxima e comprei meus indispensáveis assassinos. A cada trago desejo a morte do filho da puta que decretou a lei de proibição do fumo em locais públicos, mas fechados. Entendo os saudáveis, mas restringir o vício alheio é indigno; digno dos humanos. Fazem-nos fumar e censuram o ato quando parcela da sociedade se queixa. E nós é que somos desrespeitosos.

Sob os raios do astro maior decidi não retornar ao aposento aposentado. O aspecto lutuoso do velho apartamento me deprime mais do que a solidão em si, reforçada na arte das aranhas e nos azulejos despedaçados. Há meses não mais pertenço, careço de um pedaço de chão que possa chamar de lar sem cometer injustiça alguma. Mas o buraco possui lembranças das quais tenho medo de me libertar. É como se o futuro me exigisse tê-lo; o documento que mantém à mente o aprendizado imprescindível para não mais errar. Não adianta vender ou alugar, o 504 deixou de ser um mero bem material com tua partida. O descolorido é que ainda incomoda, e tinta nenhuma há de melhorar.

(só a dos teus olhos).

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

sacramento.

escoltado por anjos insepultos
daqueles sem céu
entrei na igreja e levei o padre ao chão
dois disparos, quase sincrônicos
como os gritos dos fiéis presentes
que inundaram o chão da casa do Pai
de saliva, lágrima e medo

meu corpo febril transpirava
água benta de sangue
enquanto Alice, atordoada
debruçava-me os braços arrepiados
e me permitiu amar, pela segunda vez na vida
exumado por completo

senti certo receio
mas nada me impediria de tocá-la naquela noite de libertação
suas brandas mãos de mãe
a ternura impura
abençoando-me da cabeça aos pés
com os lábios, os mesmos que puseram pra dormir os filhos
infinitamente deslizantes

bebíamos o vinho das cerimônias
na garrafa, ou no corpo um do outro
no momento em que a polícia estacionara em frente ao local sagrado
a sirene incumbida de sino
nos alertando sobre o perigo
mas a surdez alcoólica consumira nossos tímpanos
e o universo alarmava em silêncio

então ouvimos os passos, próximos,
e o tintilhar das algemas nervosas que anseavam por meus pulsos
Alice ordenou minha fuga e, pela janela, pulei até pisotear a rua com firmeza
a mesma que me fez tirar a vida do presbítero pedófilo
antes que sua batina acolhesse outro inocente corpo nu
e mais uma vida fosse para sempre marcada

em nome do pai, do filho, do espírito santo,
amém.