terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Berlim, 19 de dezembro de 2016.

pneus assassinos
passaram por cima dos meus filhos
tiraram o amanhã e seus planos
de final de ano
outro final reservado
massacrante, no início de uma noite fria
na terra onde a guerra brotou
um muro que foi derrubado
dessa vez foram meus filhos a cair
sob o aço do caminhão
vi pela televisão
as faixas de isolamento
os pedaços de vidros sujos de vermelho
no dia que ela foi à feira
no dia que ele comprou chocolates
nem sequer foram avisados
se soubessem, esqueceriam formalidades natalinas
diriam o quanto amavam
e perdoariam seus próprios receios
ouso dizer que se abraçariam à espera do impacto
mas agora o silêncio se reproduz
um eco oco,
uma luz de penumbras,
nas gotas de chuva que caem sem falar
sinto o meu rosto e o mundo
as várias estradas e os desertos
geleiras e minérios
meus cabelos da cor do céu negro de Berlim
sinto os mundos e os meus rostos
numa suspensão de movimentos
viver, volver, voar
talvez de cima se explique
o que daqui só faz chorar.

sábado, 26 de novembro de 2016

teria o direito?

eu que leio os últimos jornais
eu que dirijo com segurança
eu que bato o pé e mordo
eu que lambo com gosto
eu que vibro na alegria
eu que encolho na tristeza
eu que peço menos gritos
eu que apago na claridade
eu que me obrigo a cumprir
eu que deixo por fazer
eu que mudei tua vida
eu que você não quis ver
eu que sinto tanto mar
eu que cedo meu corpo a estranhos
eu que vejo os desertos do inferno
eu que limpo a mobília da casa de Deus
eu que nunca mudarei de nome
eu que fui atirado nas covas como Daniel
eu que tateio as utopias de paz
eu que me torno violento,

teria o direito
de abraçar teu corpo
enxergar tua alma
amar espírito&pele
sem precisar me explicar?

(de dentro do teu quarto te observo dormir como nos primeiros dias de nossa estada no Paraíso de manhãs verdes e continentes agrupados pela sorte de existir o destino).

domingo, 20 de novembro de 2016

artevista

pintaria telas inteiras
as curvas da via láctea
dois cães a caminhar
sobre as águas
termais da Antártida
o veludo vermelho
no céu entardecido de calor
cada dedo uma cor
deslizando sobre o branco
arte nascida das digitais
para colorir teus anseios, seios
e seiscentos meios de sorrir
para mim, pestanas cansadas
discorreria sobre o mundo
e como o sexo era tratado
na metafísica de Schopenhauer
as mãos de tinta
um mutirão de quadros
pintaria telas inteiras
só pra dar sentido aos teus
dias mais intranquilos
o mundo lá fora como um filme
podemos pausar, quer ver o final?
não gosto de estragar
surpresas no roteiro
a vida e seus monitores
ao nosso redor
sentaríamos nus e preocupados
com a falta da tinta rosa
olharíamos as primeiras horas
da manhã
e teus cabelos,
ruivos de sol,
completariam
os ciclos que nunca se fecham

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

placas.

as leves estranhezas
o suco amargo das
impaciências
ao fim do dia
no meio da tarde
em frente ao computador
eu que preciso ler
eu que preciso corrigir
o texto dos outros
escrevo e me refugio
de tantas merdas
o gosto de esgoto na boca
as leves impurezas
que compõem o ser humano
elementos básicos
de toda a literatura mundial
escrevemos sobre excrementos
aquilo que o corpo expulsa
aquilo que não podemos fazer na frente dos outros
o que farias, leitor
se me visses agora
liberto das bijuterias poéticas
dest meu textículo?
as leves asperezas
entre um homem e uma mulher
crianças com facas afiadas
um sono entrecortado
pela pele a lixa (a arranhar)
pelos pelos o lixo (nosso ar)
administre-se
precavenha-se
depile-se
case-se
siga as instruções
feitas por quem se perdeu
olhe além, e veja se vê
algo além de mim.


sexta-feira, 28 de outubro de 2016

breathe.

sobreviver aos murros
morros de reprovação
mirar de longe a vida
ajustar a vista, o joio separado
o que não se recicla
reinventarmos
as estações do ano
e as manchetes de amanhã
relermos os livros
sem os pontos finais
sem queimá-los
como no futuro imaginado de Truffaut
quantas placas de proibições
quantas éticas de papéis
ainda se levantam muros
cercas acerca de nós
obrigatoriamente
deixar a barba crescer
obrigatoriamente
cobrir mais o corpo
obedecer
senão a morte ronda
o perigo em cada quarteirão
nas esquinas da mente
monstros devoram corações
moinhos de meninos
reclamávamos das mesmas coisas
no século passado
gritávamos nas mesmas ruas
em busca do sentido
o trêmulo equilíbrio de quem contesta
é bom ir com calma
senão a morte ronda
e os vasos quando quebram
e os vidros que estilhaçam
são recolhidos à pá
e jogados no lixo.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

to Q.

nos meus vulcões e furacões, vejo tua mão
se ferido, te feres
ao caminhar em trilhas cinzas
episódios da vida real
há dias que a gente se sente
anuviados e pequenos
Deus está conosco (sempre esteve)
mas não O percebemos
ocupados em nossas distrações
de algum modo, precisamos sofrer
pagar débitos?
dívidas por existir?
devem nos atingir as lágrimas da massa
sem que notemos, batem em nossos peitos
o choro dos hospitalizados
o desespero de quem empunha a arma
e as mortes da madrugada anterior
me acalmas, com a alma da tua mão
sobre a casa do meu ser
acendes as luzes, sentas comigo e te deixas ficar
emocionados no amor
que tanto precisamos aprender

em tempos como esses
nós damos e damos de novo.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

por assim dizer,

V

Série de corpos em trânsito, a cafeteira gritando junto com a criança uniformizada, quantos dentes e cordas vocais dissonantes, na televisão notícias imaginadas no dia anterior, já sabiam da prisão do ex-presidente, outros satisfazem-se com alguns mortos (riem e batem na barriga como se saciados pelo sangue que escorre). Um filho controla um pai silencioso. Puxa com sua pequena força a manga dobrada da camisa do progenitor. O pai, estátua, assiste a vídeos no celular. Imagino como está o clima em Argel ou se os refugiados de Calais odeiam a hora do almoço como eu. Adoro me alimentar, mas odeio a hora do almoço. Tudo tão mecânico, hora de comer, hora de largar, hora de ficar em casa para não ser assaltado, estuprado. Não suporto ver as pessoas espremidas no terminal de ônibus: em blocos, encaixotadas pela necessidade de se locomover. Mas também gosto de algumas coisas. Como as luzes metropolitanas que pintam as ruas e nossas fotografias. Também não descarto sentar no primeiro degrau de uma escada e acender um cigarro. Os degraus sobre meus ombros, pés e vozes invisíveis e reais, suspirar a fumaça e brincar de vulcão.

VI

As mangas também se suicidam. Cansam-se. Observei hoje: como os humanos, vivem em grupos, aglutinadas nos galhos da mangueira. Algumas, nos dias de chuva, deixam-se escorrer suave e despencam no mais próximo chão. Outras partem na maturidade (como filhos adultos), viram suco ou são mordidas por morcegos.  As mangas nascem verdes, se amarelam, algumas são rosas, umas menores, outras imponentes. Será que sorriem ao sol? Será que morrem de medo? Desfrutam da insustentável beleza de cair. As mangas também se suicidam.

VII

Sobre viver: eterna tarde dentro de uma piscina onde lhe atiram móveis, pedaços de bolo, línguas, livros rabiscados, apólices de seguro, tarde quente que chove, neva e arde. Nas águas amenas, é possível que se encontre o amor. Sereno. A humanidade, cansada de tanto se afogar, sufoca nas águas amenas. É preciso nadar sem dar braçadas. Seguir a corrente que equilibra pulmões e coração. Mas haverá redemoinhos, reduzindo ilusões a areia. Ondas e pedras, preparem-se. Fechem a boca para não engolir água. Abram os olhos para não bater a cabeça. Desde dentro do útero, uma vida de umidades. A beleza é ser maior que nós mesmos, ou tentar. Quem se conforma, atrofia. Quem se levanta, vê o mundo além das bordas. Não se incomodam em ver tantas cercas? Portões, grades, janelas fechadas, cadeados, zíperes, cortinas, gavetas, gravatas. O mundo é um trem fatiando planícies. São as faíscas dos olhos da mulher amada que, na sua frente, voa pelo céu. Tanta vida a ser descoberta e perdemos tempo preocupados com a hora. Joguem fora os relógios: a vida não tem ponteiros.

domingo, 18 de setembro de 2016

sublimes ares.

a profunda beleza 
o estado de graça 
músicas que colhemos no caminho
das descobertas compartilhadas
habituar-se à felicidade
mesmo em dias de nuvens 
com você, o sentido em cada 
gesto, verbo, explicação do mundo
nos milk-shakes mais doces
ou nos exemplos mais salgados
nós nas gargantas, desatados
nós nas varandas, atados
pelo laço que nos liberta 
amor palavra limitada
mas a que mais se aproxima
da tradução de nosso ser

te dei três rosas
e nomeei cada uma delas
eu, a mais feliz
te, a mais linda
amo, a maior das três 
e te daria mais seis
uma floricultura inteira
aqueles campos incríveis
de fotos de computador
nada seria suficiente
nada se compara, eu sei
alguém já escreveu isso antes
talvez alguém esteja a dizer a mesma coisa
em outro bairro da cidade
em outro canto do planeta 
mas a mim me importa eu
minha vida é única 
e ela tem sido você
ela tem sido compartilhar
ela tem sido aprender
ensinar, errar, derramar
lágrimas de felicidade
e copos de água na sala

o filme na TV, pouco importa
eu levo essa casa
numa sacola ou na minha mochila rasgada
divido o colchão
arrumo um cavalo
e ensino o caminho do teu coração 
da tua alma estrada de cores
pra eu nunca sair daí
meu corpo no terraço 
a pele leve que flutua
toco teus olhos 
com o perfume das palavras

viver é andar de mãos dadas e conseguir olhar o sol.






quinta-feira, 8 de setembro de 2016

uns lampejos.

pela maneira que olhas
encontraremos uma maneira
de viver sem as serpentes
do egoísmo e seu lodo
pela maneira que olhas
haverá travesseiros
pétalas de café morno
o dispensável na dispensa
pela maneira que olhas
seremos janelas
e nos limparemos
da sujeira involuntária de viver.

lá dentro, a cristalinidade
no centro das saudades
mais puras de ser
um amor encaixado
pele a pele, sem apelo
no peito um candieiro
que dissipa toda névoa
me olhas, te olho
os lunáticos vivem em sonhos
somos, então, lunáticos?
a rir das bobagens
e chutar baldes invisíveis
enlouquecemos por amar
e nunca estivemos tão
elucidados.




sábado, 27 de agosto de 2016

que eu vou.

nem precisa vir
mastigando palavras bonitas
ou preocupado com minha bolsa
pesada nos ombros que adoram tua língua
não precisa, não
reparar na minha franja
que eu cortei ontem à tarde
pensando como tudo parece filme
daqueles que a gente tanto gosta.

é só me olhar assim
desse jeito de quem mata o mundo por mim
desse jeito de água morna na chaleira
pronta pra explodir
é só me deixar assim
livre no céu da tua boca
voando no aconchego dessa cama
que eu vou sorrir só de viver.

eu vou ficar puta
quando você perder a paciência
e xingar o garçom desleixado
eu vou me calar
se você não perceber
que está pisando nos meus pulmões
porque ser mulher é tirar,
constantemente,
pés de cima de você.

mas se eu fizer a mala
e disser "vamos"
não haverá quilômetros
não haverá demônios
não haverá tempestade, nego,
que me faça ficar em casa
e não ir decalcar o planeta com você
é só me olhar assim
desse jeito de quem mata o mundo por mim
é só me amar por saber quem sou
é só apertar minha cintura
e só largar quando dormir
que eu vou.

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

todos os dias o amor diz obrigado.

Um mar de peixes luminosos sob nossos pés e olhos. Do alto da serra, víamos a cidade anoitecida. De corações quentes, ríamos do frio que ultrapassava os casacos e não perdoava minhas orelhas. Eu me sentia aquecido, boiando numa calma piscina de chamas agradáveis que não queimam, mas fazem florescer. Deve ser assim, depois da vida, quando as almas se encontram no sol e o que eram braços se tornam raios e luz.

Nas esquinas da cidade, o mundo espalhado em sotaques do leste europeu, nas bochechas rosadas dos jovens da Inglaterra, dentro da profundidade do olhos de africanos. Nós, em meio ao mundo espalhado num só lugar, observávamos cada faísca de alegria, os gritos das torcidas, hinos também. Também o silêncio de quem estirava a mão e pedia um pouco (de atenção e de dinheiro, nesta ordem). Eu sentia meu peito inchar, encher-se de humanidade, da maturidade que vem com a experiência. E, acima de tudo, sorria, quando olhava para o lado. 

Porque ali, de gorro e calça jeans suja de sentar no chão, você abria aquele sorriso quando eu falava algo pornográfico mais alto, pra te constranger. Eu me preocupava com as exigências profissionais, mas tua mão no meu cabelo assanhado me puxava de volta para a piscina de chamas agradáveis, onde testas não se franzem. Em alguns momentos, eu pulava da piscina para me trancar nas cavernas que ainda se abrem em mim. Mas voltava, mais leve, mais peito, mais perto como nunca de você. 

Crescemos. Como par, como seres humanos. Cresceram a amizade, a união. O amor. A vontade exagerada de não querer largar. O sentimento bonito de caminhar pelo outro, sem que isso anule nenhuma individualidade. Sem perceber, arrumando a mala ou dividindo os trocados para lanchar, nos mudamos para um novo mundo, arquitetado por nós mesmos. Em meio a tantos mundos, o nosso, em constante movimento circular e recíproco de querer bem. 

Saber que seguiremos me faz acordar alimentado pela calma. Vou baixar aquele CD, sem te dizer, pra te pegar de surpresa quando você ouvir que nothing's gonna hurt you, baby. Vou comprar nutella e bolacha e deixar na mochila pra quando não der pra almoçar. Vou morder teu pescoço pra ouvir você falar "isso" quando eu não quiser saber de mais nada que não importa. 

Cheguei em casa e ainda não desarrumei a mala. Você sabe o porquê.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

papéis com tinta de caneta.

mordeu os cacos
de vidro das garrafas
atiradas na parede de ontem
a crocância em estalos
nas gengivas
e engoliu
como quem fecha
os olhos e tapa
os ouvidos.

eram nove e meia
quando tirou a camisa
e deitou com as costas
beijando o chão
azulejos e músculos
no jornal da noite,
as notícias de ontem
na radiola da vida
uma agulha quebrada.

perto da meia-noite
quando matou leões
e expôs a carcaça
no salão de festas
monstruosidades
brindadas a drinques
não há mais espanto
no dicionário humano.


quinta-feira, 21 de julho de 2016

Winds

estás aqui
ao meu lado
cantando Skank
enquanto aguardamos 
nossa janta
tirei uma foto engraçada
belisquei os pelos
sob teu umbigo coberto
eu poderia ficar até amanhã 
deitado nessa cama
eu poderia vender a câmera 
e comprar passagens sem volta
São Paulo ou São Francisco 
Crato ou Cracóvia
blindar um carro e sair
on the road
on the flow
até completarmos uma década 
e perguntarmo-nos sobre
filhos e casa
até tornamo-nos pais
e esquecermos nossas 
prioridades 
por mim eu vou
voar no balão
que oxigena cada alma
o teu é vermelho
deseja sobrevoar campos
e aterrissar onde mãos 
precisam de sorrisos
tua alma é muito grande
para nossa limitada
geografia
minha tacta retina
foi tocada
atingida em cheio
pela tua 
também tacta
olharmos na mesma
direção 
é contemplar 
onde Deus rascunhou
essa história 
é sentir a brisa
e os cabelos sendo massageados
pelos ventos do amor.


quarta-feira, 20 de julho de 2016

Future leaves.

tomou um café com bocejos
escutou o noticiário
dois homens feridos no metrô
as vidas e seus trilhos
ao morder a bolacha
seca e aberta de ontem
pensou como seria viver
num campo da Grécia
inundado de refugiados que
chegam nos barcos do mar
pombos sambavam voos
quando levantou para morrer
mais um dia naquela agência
carimbando fragmentos de
vidas resumidas a papéis
somos vacas que falam
pensou assim calado
somos os encarroçados
mas o verde do céu
e o azul da terra
há de nos engrandecer
nos dias anoitecidos
pelos tecidos da existência
humana, não mais homens
de porcelana
o retorno do Cristo
vestido pelo Sol
e as bolas de fogo
não serão nada além
do que respingos no ar
a arder
e latejar.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

na selva, na relva da noite.

the brain's rain
slowly swallowing
my eyes blue eyes
river inside a head of stone
just saw it coming
darkshines and a fear
the jealous untied
like a shirt with no bottoms
on a day with some rain
feel the flood
I'm writing to my
sweating hands
defetead man
but look aside
watch a born
crying that makes you smile
a world of receptivity
rise and fly
you'll be a man
you'll be a woman
life's not a novel
but you should read it

can we get lost
or morir
sin espada
numa estrada
que não leva
a nada?

segunda-feira, 4 de julho de 2016

registroati.

Nestes colares artesanais de palavras, meus dedos se pudessem borrifariam o perfume que você mais gosta em cada vírgula, cafuneariam os parênteses para se transformarem em almofadas aos teus cabelos cor de acerola. Debaixo de uma cachoeira, um dia, senti teu colo que eu só conheceria mais tarde, a me acarinhar as panturrilhas com as digitais mais amorosas. Há tempos percebi teus passos, teus pés que pisavam num terreno com cercas, teus pés que corriam, mas não voavam. Há tempos, à distância, vi a águia dentro do teu peito repousar à espera de vento. Trouxe-te um vendaval. Abri também em mim os janelões da liberdade, aquela batizada longe de templos e condomínios. Para te contemplar por inteira, reluzindo desejo de nascer de novo (porque, na vida, há inúmeras placentas).

Recomeço a partir de um reencontro. Já vivemos tudo isso? Talvez já caminhamos pelo centro do Recife de antigamente. Talvez perdi o emprego, quando a guerra nos dividiu em continentes. Quem sabe não corri, escravo, atrás dessa índia de olhos amendoados? Podemos ser nós, por que não, personagens de algum livro que desconhecemos. Nosso passado guardado nas bibliotecas. Abençoados os que esquecem, pois desfrutam do prazer de imaginar.

Numa vida de tantas notas, escritos, reportagens e postagens para outros verem, apenas uma narrativa pulsa como nenhuma outra. A escrita com os caracteres da alma, que alguns chamam de o maior sentimento habitante da humanidade. Ao amor, um texto não basta. Ao amor, uma vida não basta.

sexta-feira, 1 de julho de 2016

das flores que eu olhei...

nos jogos de azar
a gente perde
quase sempre
dados perversos
o sarcasmo dos números
que não creem em você.

nos jogos de atar
a gente tenta
embolsar felicidade
acorrentar sorrisos
e fechamo-nos mudos
em mundos miúdos demais.

nos jogos de amar
nestes sim
os silêncios são lençóis
competição apenas de lábios
alimentados no leito desse rio
de beijo que entorna o mar.

a louca ternura
a tenra temperatura
dois corpos xilogravados
da boca à cintura
espasmos pelas manhãs
que noites não existem
tudo luz
tu, luz
luz, eu
sol, nós.

sábado, 18 de junho de 2016

somos sonhos.

éramos a vida e eu
como dois remos na canoa
meus olhos resguardados
peito sem leito pra repousar
a represa estancada
não deixava minha cachoeira cair
porque cair é fraqueza.

vieram a vida e você
como dois sóis iluminando
dos fios do meu cabelo negro
às palavras trancadas
na escuridão do meu eu
pude, então, atirar-me
ver a beleza da queda
porque cair é chegar
mais perto do céu.

hoje no espelho
vejo campos e mar calmo
vejo a brincadeira dos meninos
vejo avenidas sem trânsito
o abraço dos lábios
livros relidos e amados
o espelho me mostra um homem
que pode ser humano
e operar milagres
nas varandas dos defeitos.

encantar-se é olhar pra trás
e ver que o sonho
dos dias passados
hoje toca meu rosto
com as mãos.

sábado, 11 de junho de 2016

alma no camina; vuela.

encontram-se sorrisos
nos sons e nas cores
do esmalte das liberdades
não basta-nos andar
posso pular esta poça?
posso voar sobre mares?
andares acima das
cabeças das moças
de saias longas e olhos baixos
bem mais acima dos 
rapazes sem cabeças
que pensam achar
quando nem o pensamento
atingem, por não terem
cabeças.

Deus me livre
da falta de liberdade.

Deus é livre
da falta de piedade.

de fatias, não viverei
hoje vou de meias
amanhã, pé no chão
como eu quiser
nos nós da censura
rabiscar laços
correntes só as dos rios
que navego maravilhado

soltar-se,
saltar em si,
ensolarar os becos
da própria consciência. 



quarta-feira, 25 de maio de 2016

depois do trabalho.

Afastei o computador para a parte mais ventilada da sala. Preciso de ar quando sento na frente do monitor e penso em te escrever. Não é pneumonia, mas os pulmões se contraem e sinto um aperto no escorrego da garganta. Sim, é exagerado este texto que tem como destinatários exclusivos esses dois olhos castanhos, cor de céu amanhecido. Poderia fingir, mas não gosto de desonestidades. Portanto não vou mentir e dizer que minha paz não depende da tua. Não vou ousar dizer que, sem você, eu consigo trilhar como se deve a linha perturbadora da vida. Não posso fingir: viver ao teu lado tornou-se como luz para o pescador noturno. Essencial.

Me pego sorrindo. O coração em cambalhotas. Os dentes libertos do cativeiro dos lábios, à mostra, sempre à mostra, mesmo sem você ver. As cargas do trabalho mais leve nos ombros, se durante as tarefas redireciono a mente às tuas gargalhadas dentro do carro. A insustentabilidade do cotidiano amenizada, se o celular vibra e um emoji de coração surge embaixo do teu nome. A paixão, turbina de avião pré-decolagem. O amor, toneladas de aço pairando entre as nuvens. O que é a vida, senão o céu a se alcançar?

No vitrola que era da tua vó e hoje embala nossas noites, o jazz que fiz você admirar. Notas de trompete, tempo após tempo, você me ouvirá dizer o quão sortudo eu sou, por te amar. De Baker a Bouvier, nossas canções de uma vida. Todas em uma sala: aquela dos meus 14 anos, a de quando você comprou seu primeiro allstar, a de quando você chorou sem mim, a de quando eu me arrependi sem fim, a de quando nos amamos, enfim, a trilha de duas existências rabiscadas pela agulha do toca-discos. 

À espera de você chegar. Abrir a porta irritada, maldizer a humanidade e pedir que eu não me importe, porque está naqueles dias. Me dar um beijo e se apertar contra meu corpo, porque ali se desfazem guerras. Sentar no sofá, tirar o tênis e rir da minha cara imitando um macaco-prego. Jogar o cabelo pra trás e fechar os olhos, enquanto eu beijo teu pescoço para desarmar o que já está entregue. Teus dentes libertos nos meus, à mostra, dois corações em cambalhotas. Duas vidas em rima.  

quinta-feira, 19 de maio de 2016

dorme que passa.

por que esmurro a parede
se sabemos, bem sabemos
dos gracejos da vida
com nosso equilíbrio tão tênue?
pra que dar casa à agonia
se sabemos, bem sabemos
jamais teremos controle
total de um corpo que morre?

a escuridão e suas cores
permitem-nos enxergar
a candência das estrelas
e os beijos selvagens
dos raios no ar
aceitarei meus buracos
meus CDs arranhados
minha voz insegura
quando te vir calar
a boca e não me beijar
quando dos meus dedos
escorrerem a razão
não esconderei as mãos
no bolso do casaco
verás a mim, assim
errado, serrado
mas com os olhos nos teus

se hoje não o fiz
tu sabes, bem sabes
é porque jamais teremos
controle total de um
corpo que morre
e reamanhece
teimoso
todo
santo
dia.

sexta-feira, 13 de maio de 2016

de olhos bem fechados.

dos parques do Alasca
aos sorvetes derretidos
nas praias abarrotadas
uma mão que treme
ao toque frio da solidão
meus pais nunca voltaram
da viagem ao mundo das coisas
o estado das coisas
que não tem capital
nem bandeira
nem marcha uniformizada
a madrugada tem dessas coisas
um homem no hospital
o giro da polícia
meus gemidos de animal
debaixo da ponte vi Jesus
observar a humanidade e seus canais
esgoto, riso, sangue, sinal no alerta
nos olhos do Mestre pensei
ter me visto quando criança
que bobagem a minha
de querer ser especial
preparar-se
porque Jesus voltará
o ser humano não mudou
eu o vi debaixo da ponte
ele voltou,
ele nunca foi,
ele todo dia pede um pão
e não tem sequer cama pra dormir.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Chama.

dentro dos teus olhos, 
escorre minha falta de sono
dentro da tua meia-calça rasgada, 
meu apetite matinal
sorrio e mordo
caminho e corro
e percorro a língua nos morros
do teu ventre nu
ventos uivantes
a frieza da noite perdida
em floresta de fogo
árvores-tochas tocam
o céu pintado
de estrela e brasa
nossos gritos distorcidos
nas guitarras 
dos seis continentes
meu mundo mudou de modos


you know you shook me,
you shook me all night long.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

evolução.

no dia em que sonhei
com a origem do meu corpo
vi fatias de moléculas
se aglutinarem em tortas
observei que dos meus
recém-nascidos ossos
fluía um vapor vagaroso
fumaça de sopa
chaminé
pequeno feto feliz, até sorri
antes de chorar no mundo.

ontem à noite eu sonhei
com a origem do teu corpo
as mesmas moléculas em pizza
o mesmo vapor vagaroso
envolvia-te como uma manta
ao longe ouvi uma voz de homem
dizer para alinharem teu espírito
às essências gotejadas no meu
e os carpinteiros do invisível
rascunharam a lápis
nossa pré-história.

não mais me assusto
não mais me assombro
esse amor que nos abriu
no meio e nos acoplou
já respirava antes mesmo
da invenção de nós dois.

terça-feira, 26 de abril de 2016

lost in you

pra fora
antes que eu morra
pra fora
porque voltei a escrever
eu não quero escrever
quero passar pela vida
sem o peso da literatura
só escrevo quando inundo
por dentro

pra fora
vai embora antes que
eu cancele as passagens
e peça demissão por justa causa
antes que a mobília seja comprada
nas cores do teu cabelo
pode ir sem dó
vai, corre, foge, rasga
voa, plana, sobe, some

pra fora de mim
que já estou ao avesso
órgãos à mostra
pele escondida
alma pra fora
boca perdida

e se na rima
preferires ficar
acalma-te em cima
de mim, teu lugar.

pra flora.


quarta-feira, 20 de abril de 2016

Vida que bate.

enche-me de sal
pois teu mar me hidrata
lava-me de sol
e meu campo forrar-se-á
com teus delicados dedos
complicados meios
percorri até te achar
tantos sinais e sinos
assassinos precisei matar
nasci, morri até te achar
numa manhã gelada de julho
naquela noite sem vento e sem cor
quando o silêncio apagou
todas as luzes da casa
e me expulsou a cuspes.

sem pele, fui
sem barba, fui
com medo
com nada
além desse amor em lava
fui
até te ver nua
coberta com as nuvens
da dúvida
nos olhos, a vida
da cidade
o metrô,
as passarelas,
as meninas de fone,
os senhores com fome,
minhas poesias jogadas
em uma praça sem nome,
tuas pupilas, tuas retinas
escrevendo-me teorias
hipóteses do nosso século
estamos vivos, elas me disseram
e só quando baixei as pálpebras
acreditei enfim


por tudo que respira.





sábado, 9 de abril de 2016

Preste atenção: o mundo é um moinho.

Andar a cidade, torcer para o suor expulsar, minar esse desconforto. Acordei contigo do meu lado, senti tua presença pela casa, bailando pela ponta dos pés. Levantei com a impressão de estar incompleto, sem dentes pra sorrir feliz e despreocupado. Me peguei irritadiço, sem prumo, dirigindo pela cidade que, ao teu lado, parecia filme, cenário de livro, o lugar do qual pertencíamos. Hoje quis sair daqui. Sair de mim, principal causador disso tudo. Senti saudade do teu beijo, mas isso você não precisa saber. Porque do tamanho que é tua luz, reverterás esses dias mais obscuros e voltarás a encontrar tua paz que tanto me acalmou. Eu, não sei. Pode ser da vida acostumar. Hoje queria chorar contigo, na tua frente, pedir desculpas, comprar um hambúrguer, cantar duas músicas, fingir que nada, absolutamente nada de doloroso aconteceu e seguir nosso caminho. Talvez amanhã eu lide melhor com tudo isso. Hoje, não.

***

estou no meio da estrada.
eu sou a estrada parada
eu sou a curva que some
eu sou o asfalto rachado
eu sou o espelho da humanidade
que ainda tenta encontrar o Grande Mapa
para retrilhar o caminho dos perdidos.


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Levanta a cabeça. Abre bem os olhos. Encara o medo dentro do olho e não tente mandá-lo embora. Ele que fique. Ele que tente começar a gritar. Ele que bata na minha cara. Faça o que quiser. Eu aguento. Que a minha alma suporta tudo.