terça-feira, 27 de abril de 2010

cíclico.

era ano de copa do mundo
como hoje
papai entregava-se ao álcool
o cheiro de vinho barato
cada gole representava uma desistência
era ano de festa
de ditadura
foi-se assim
nem no pódio ficamos
era 6 de julho
quando cresci pela primeira vez na vida
e abortei meus pais.


é ano de copa do mundo
como ontem
a televisão do quarto mostra as tempestades de fora
com as minhas ninguém se importa
maldito hospital de mortos
é ano de festa
de eleições
assim será
medalhas tilintam distante
é 27 de abril
finalmente cresço pela última vez na vida
minhas crianças perderam a memória.

sábado, 24 de abril de 2010

fragmento da obra futura - part I

Mastigávamos o vidro em cacos enquanto a madrugada, brilhante e oval, costurava em linhas brancas nossos quatro lábios num só. O gosto das lágrimas anteriores ainda salgava as línguas bailarinas que, de passo em passo, espantavam secreção e medo. Minha precipitada ereção guiou-nos à cama dos seus pais, cuja amplitude fez-me sentir, por um leve instante, como um patriarca, totalmente submisso aos poderes da princesa da casa. Fiz questão de manter os olhos abertos. Mais do que qualquer toque ou suspiro ao pé do ouvido, ver sua boca aberta, contrapondo-se às pálpebras grudadas, em completo silêncio e êxtase, me borbulhava as entranhas de maneira quase insuportável. Não demoramos mais de três minutos, não era necessário; quando a paixão alcança o fascínio, segundos eternizam e equivalem a anos vividos. Ainda me tendo em seu interior, Penny me encarava com um sorriso puro e descansado. Nascia em nós um resistente elo, um filho, éramos dois tijolos ligados pelo cimento na parede da vida. No final daquele onírico mês de maio, alugamos um quitinete onde nidificamos entre móveis mofados e sonhos de orvalho. Nosso simpósio diário edulcorava as horas, tão dilacerantes nos tempos individualistas; arranjamos trabalho em poucos dias, eu como produtor de um programa infantil de tevê, ela de assessora de imprensa num time de futebol em decadência, mas que pagava bem. A repetitiva certeza de que ao chegar ao apartamento aquele par de olhos verdes me receberia com um brilho fulminante minimizava qualquer indício de frustração durante o dia. Assim dialoguei com a vida por pouco mais de cinco meses. A erosão iniciou-se com as viagens. Penny não mais parava em casa, conheceu todo o país a trabalho. O país do futebol. Meu desgosto por esportes apenas aumentava com a constante distância. A perda do entusiasmo novamente, novamente predominou o maltrato da insônia na cama desabrigada. Quando retornava, Pennelope permanecia a maior parte do tempo quieta, tinha plena ciência do rumo que havíamos tomado por má sorte ou relutância do destino. Minha maior angústia era sermos, eu e ela, mais um exemplo de que por mais abrasador e monstruoso que seja o amor, fatores externos têm a capacidade de reduzi-lo a nostálgicas memórias de um tempo irrecuperável.

Uma oferta de emprego tomou coragem por nós e pôs fim à doçura há muito perdida. Retornei ao meu antigo apartamento, mas deixei no quitinete as orelhas, o nariz e a boca. O assobio dos pássaros era o mesmo, o velho uísque tinha seu hálito. O cotidiano mais uma vez um ringue cujos combatentes se ferem, algumas vezes, sem perceber. Inerme, tornei-me alvo dos golpes alheios. Em 29 de novembro de 2008, fui demitido pela terceira vez em minha história. Entregue, rendido. O pressuposto perfeito ao suicídio, lento ou imediato, dependente da força que ainda sobra. As inúmeras possibilidades rodeavam minhas ideias, como um periclitante redemoinho cuja sina inalterável é aniquilar. Cheguei próximo a ingerir uma combinação fatal de comprimidos. Por um pé, ou uma inclinação mais efetiva, não deixei o corpo cair em queda livre d’um edifício, uma filial da tevê. Mesmo coberto de lodo e saudade, a vida me parecia menos sofrida que o despreparo da morte. A glória da tortura, descobri mais tarde, é privilégio subestimado pelos homens que não enxergam a virtude de se ter uma foice incrustada no cérebro.

terça-feira, 20 de abril de 2010

amnésia.

opacidade dominical
desde cedo se instala
lamaçal no piso onde piso
onde o pé afunda estático
a lembrança um eco
vejo uma fazenda e de nada recordo
um pulôver descansado na cadeira
ambos negros, como minha memória
perdida por motivos desconhecidos
sem dor ou sangue aparente


arrasto-me pelo arrozal
há luzes num casebre não distante
lá encontrarei respostas para clarificar-me
já ouço vozes, sim, uma discussão
má impressão sinto, aliado a um tremor no bíceps
vá e não volte!, grita uma mulher de idade na janela
com um chamativo candelabro em uma das mãos
o mendigo sai cambaleante
olha-me sem encarar e continua
desaparece murmurando insatisfação pela espórtula não dada
a senhora me investiga em silêncio
abre a porta como quem convida
entro e sento sem pedir
a mulher parece me conhecer
por respeito e alguns minutos, não dá uma palavra sequer
me chama por Levi, enfim
seu tom melífluo surpreende meu pré-conceito
eu jamais ouvira aquela voz
pergunta-me por que demorei tanto
avisa, quase imperceptível, a chegada de Raul
e pela entonação no nome percebi correr um certo perigo
como um bêbado, pergunto onde estou
mas antes que a questão fosse resolvida
apago

.

um pequeno gato mia aos meus pés
o inchaço no dedão direito lateja à cabeça
também ferida
atropelo uma ferramenta metálica ao tentar levantar
o gato foge
um homem entra no quarto e me aponta uma faca
manda-me deitar e rezar pois meu fim se aproxima
em centésimos de segundo, apanho a arma de sua mão
ele corre, como o gato
sós, eu e a faca
o que me trouxe aqui?
minha última recordação é Tânia no hospital
prestes a parir
de meu indicador direito um sangue sem brilho desliza ao pulso
tiro a camisa e pressiono o ferimento
atravesso um corredor estreito até uma sala de paredes rubras
que lentamente se transformam em um preto claustrofóbico
e infinito

.

a chuva me desperta
o que faço com uma faca na mão de um dedo cortado?
um do pé também me causa dores
meus ombros congelados
a água invade por todos os lados
ilhado, pulo a janela e caio numa piscina vermelha
quatro corpos bóiam simétricos
no tórax de um, cicatrizes alertam:
"1º andar"
Tânia estava amarrada à cama, desmaiada e nua
quase submersa por completa
ao retornar à consciência
Tânia me pôs para dormir

.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

se pa ra ção.

"Com enorme lástima registro-lhe o final de um planejamento. Após recentes episódios de indignação, deixo o cargo no qual construí um nome e cuja durabilidade revivificou meus sentidos, minha interpretação de vida. A incorrigível eiva crescida entre nossas opiniões tornou a vivência sinônimo de morte, esfacelando amizades intocáveis, como a demolição de uma montanha. Enquanto capsulavas a nitroglicerina da realidade, permaneci atento, como um estagiário sedento por aprendizagem, e, de porta em porta, tentava apreender o máximo de ensinamentos tidos como dádivas oferecidas em troca de nada. Meu desempenho não mais foi que irregular, acertos e erros, mais os segundos, mas a falta de compreensão lesou a força de iniciante que em meus pulsos palpitava. A cada acerto, um erro apontado. E o núcleo, nosso núcleo, dissipou-se em meio às angústias, aos prêmios, quando a maior conquista era renegada ao comum, 'todos têm amores', você afirmava inflexível.

O casamento foi um erro. Necessário, como hão de ser os equívocos, mas dor tamanha derrubaria dragões num sopro, sem fogo. Nunca desejei que chegássemos a tal nível. Olhar teus olhos outra vez e dizer pela boca tudo isso, contudo, seria como me crucificar. A casa é sua, sempre foi. Como pode ver, retirei meus objetos pessoais, os vinis que tanto causaram discussões, e espero não ter esquecido nem uma tampa de caneta. Porque o que eu quero esquecer e superar continuará sobrevivendo neste local cujas entranhas jamais desejo voltar a adentrar. Adeus e siga em frente. A vida é muito mais do que eu e você".

Assim, pus fim a 3 anos das mais tortuosas noites que enegreciam os dias, raros como sorrisos verdadeiros. Larguei o texto escrito à mão em cima da mesa da sala, onde tomei uma taça de vinho pela última vez. Em um só gole, esvaziei o que de concreto ainda havia naquele lugar.

sábado, 3 de abril de 2010

needle park.

A primeira seringa, nova e intocada, era destinada a Ludmila, também novata e virgem como aquele objeto tirado do plástico com cautela por Lou, o mentor. Os olhos de Ludmila brilhavam uma expectativa temerosa, esmagava os dedos contra a palma da mão com uma força assustadora; chamou a atenção dos demais. Outros dedos, calmos pela morfina, aterrissaram em seus ombros a acalmando, era Janette, compactada num vestido cor de café que fazia sua brancura reluzir como um refletor na sala nublada. Lou aproximava-se cantando em espanhol, uma mão dentro da calça, outra segurava a seringa como quem segura um bolo de aniversário, sentou-se ao chão e, entre as pernas de Ludmila, pegou-lhe o braço e esticou como um tapete. Janette ainda acalmava a pulsação de Ludmila quando a agulha penetrou sua epiderme, atingindo uma ansiosa veia. Como um deslize, a heroína confundiu-se ao seu sangue limpo e em poucos segundos seu coração acelerou, um guepardo ao céu aberto, um céu de vários sóis cujo calor invadia todo o corpo da adolescente. A euforia imediata chega como uma locomotiva, Janette a beija na clavícula esquerda, desce à cintura, novamente usa os dedos para acalmá-la, sabe que não é preciso, mas insiste em seu desejo e Ludmila ludibriada morde o lábio inferior e tem a plena certeza de estar n’outra galáxia. Em poucos minutos, retorna do nirvana e, ao perceber Janette mergulhada em sua vagina, empurra-lhe a testa com os punhos; um repentino mal-estar assola Ludmila e, aos prantos, sente-se como vomitasse ao revés. Tenta manter-se em pé, mas os joelhos parecem duas molas e desfalecem, cai junto a Janette que lambe o chão em círculos. A dois metros, Lou continua sua interpretação, agora sem roupas, a sala ziguezagueia e Ludmila grita desesperadamente, até uma tapa fechar sua boca. Zonza, da droga e do golpe, deixa as costas deitarem no piso frio e ali fica, lutando contra o estômago, o esôfago em chamas.

A serenidade pós-terremoto se faz presente; Janette dorme de boca aberta no pé do sofá, Lou calou-se, enfim, e beija um homem cujo umbigo se assemelha a um pneu, também ele se mantém em silêncio. Ludmila chora um riso mudo, os braços finos repousam paralelos, queria levantar e ir pra casa, mas a falta de força e de sentidos a apagam suavemente. Acorda uma hora depois, talvez menos, alguém toca, no violão, uma melodia conhecida. Uma voz rouca surge, Ludmila reconhece de imediato, It’s all over, baby blue, é o homem do umbigo-pneu que canta com um cigarro na boca. Tentava assobiar, mas o cigarro o impede e, entre o cigarro e o assobio, escolhe o primeiro, superando a ausência do segundo. Antes da estrofe final, um estrondo grave vem da rua; alguém bate o carro numa árvore. A motorista sai sorrindo, como se atravessasse o ponto de chegada, é alguém do prédio ao lado, Lou manda um beijo da varanda e ela mostra o dedo com vigor. Ludmila sorrir com apenas um lado da boca e olha o relógio: 04:54 da manhã, às 14:00 precisaria estar na redação, era domingo. Mal se despediu, pegou a bolsa quase vazia, na escada lembrou-se do casaco, voltou, Janette o segurava com um olhar de arrependimento. Pegou rapidamente e passou novamente pela porta que por muito tempo entraria. As pernas caminhavam trêmulas; doíam o pescoço, as costelas. Chegou no apartamento, despiu-se e, como estava, se jogou no colchão úmido com a intenção de recuperar as energias para mais um dia de trabalho no maldito jornal. Não pregou os olhos.