quarta-feira, 25 de maio de 2016

depois do trabalho.

Afastei o computador para a parte mais ventilada da sala. Preciso de ar quando sento na frente do monitor e penso em te escrever. Não é pneumonia, mas os pulmões se contraem e sinto um aperto no escorrego da garganta. Sim, é exagerado este texto que tem como destinatários exclusivos esses dois olhos castanhos, cor de céu amanhecido. Poderia fingir, mas não gosto de desonestidades. Portanto não vou mentir e dizer que minha paz não depende da tua. Não vou ousar dizer que, sem você, eu consigo trilhar como se deve a linha perturbadora da vida. Não posso fingir: viver ao teu lado tornou-se como luz para o pescador noturno. Essencial.

Me pego sorrindo. O coração em cambalhotas. Os dentes libertos do cativeiro dos lábios, à mostra, sempre à mostra, mesmo sem você ver. As cargas do trabalho mais leve nos ombros, se durante as tarefas redireciono a mente às tuas gargalhadas dentro do carro. A insustentabilidade do cotidiano amenizada, se o celular vibra e um emoji de coração surge embaixo do teu nome. A paixão, turbina de avião pré-decolagem. O amor, toneladas de aço pairando entre as nuvens. O que é a vida, senão o céu a se alcançar?

No vitrola que era da tua vó e hoje embala nossas noites, o jazz que fiz você admirar. Notas de trompete, tempo após tempo, você me ouvirá dizer o quão sortudo eu sou, por te amar. De Baker a Bouvier, nossas canções de uma vida. Todas em uma sala: aquela dos meus 14 anos, a de quando você comprou seu primeiro allstar, a de quando você chorou sem mim, a de quando eu me arrependi sem fim, a de quando nos amamos, enfim, a trilha de duas existências rabiscadas pela agulha do toca-discos. 

À espera de você chegar. Abrir a porta irritada, maldizer a humanidade e pedir que eu não me importe, porque está naqueles dias. Me dar um beijo e se apertar contra meu corpo, porque ali se desfazem guerras. Sentar no sofá, tirar o tênis e rir da minha cara imitando um macaco-prego. Jogar o cabelo pra trás e fechar os olhos, enquanto eu beijo teu pescoço para desarmar o que já está entregue. Teus dentes libertos nos meus, à mostra, dois corações em cambalhotas. Duas vidas em rima.  

quinta-feira, 19 de maio de 2016

dorme que passa.

por que esmurro a parede
se sabemos, bem sabemos
dos gracejos da vida
com nosso equilíbrio tão tênue?
pra que dar casa à agonia
se sabemos, bem sabemos
jamais teremos controle
total de um corpo que morre?

a escuridão e suas cores
permitem-nos enxergar
a candência das estrelas
e os beijos selvagens
dos raios no ar
aceitarei meus buracos
meus CDs arranhados
minha voz insegura
quando te vir calar
a boca e não me beijar
quando dos meus dedos
escorrerem a razão
não esconderei as mãos
no bolso do casaco
verás a mim, assim
errado, serrado
mas com os olhos nos teus

se hoje não o fiz
tu sabes, bem sabes
é porque jamais teremos
controle total de um
corpo que morre
e reamanhece
teimoso
todo
santo
dia.

sexta-feira, 13 de maio de 2016

de olhos bem fechados.

dos parques do Alasca
aos sorvetes derretidos
nas praias abarrotadas
uma mão que treme
ao toque frio da solidão
meus pais nunca voltaram
da viagem ao mundo das coisas
o estado das coisas
que não tem capital
nem bandeira
nem marcha uniformizada
a madrugada tem dessas coisas
um homem no hospital
o giro da polícia
meus gemidos de animal
debaixo da ponte vi Jesus
observar a humanidade e seus canais
esgoto, riso, sangue, sinal no alerta
nos olhos do Mestre pensei
ter me visto quando criança
que bobagem a minha
de querer ser especial
preparar-se
porque Jesus voltará
o ser humano não mudou
eu o vi debaixo da ponte
ele voltou,
ele nunca foi,
ele todo dia pede um pão
e não tem sequer cama pra dormir.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Chama.

dentro dos teus olhos, 
escorre minha falta de sono
dentro da tua meia-calça rasgada, 
meu apetite matinal
sorrio e mordo
caminho e corro
e percorro a língua nos morros
do teu ventre nu
ventos uivantes
a frieza da noite perdida
em floresta de fogo
árvores-tochas tocam
o céu pintado
de estrela e brasa
nossos gritos distorcidos
nas guitarras 
dos seis continentes
meu mundo mudou de modos


you know you shook me,
you shook me all night long.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

evolução.

no dia em que sonhei
com a origem do meu corpo
vi fatias de moléculas
se aglutinarem em tortas
observei que dos meus
recém-nascidos ossos
fluía um vapor vagaroso
fumaça de sopa
chaminé
pequeno feto feliz, até sorri
antes de chorar no mundo.

ontem à noite eu sonhei
com a origem do teu corpo
as mesmas moléculas em pizza
o mesmo vapor vagaroso
envolvia-te como uma manta
ao longe ouvi uma voz de homem
dizer para alinharem teu espírito
às essências gotejadas no meu
e os carpinteiros do invisível
rascunharam a lápis
nossa pré-história.

não mais me assusto
não mais me assombro
esse amor que nos abriu
no meio e nos acoplou
já respirava antes mesmo
da invenção de nós dois.