quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

antemanhã.

Poderia fermentá-lo
guardá-lo no forno ameno
chocolate de recheio
meu bolo de palavras.

Prefiro a gema crua
clara longe da estalactite
meus versos despreparados
que apenas trauteiam
inspiração.

Se hoje o dia raiou
antes do meu sono
é porque o sol sentou
na mesa para me esperar.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

um servo.

Minha existência está por acabar
sinto necessidades hospitalares
urgentes,
como as chamas do prédio que oram águas
para agora, o tempo perdido
vencido pelo cansaço
para onde acelerar?
a tentativa de despreender-se dos vícios
o desejo de desbravar o planeta,
enquanto o miúdo universo interior degladeia-se com todas as forças
a mão estendida
que escreve mirando respostas, ajuda
sinto-me mais febril que nunca
quando direciono a mente a ela
aos medos compartilhados
palpites imaturos de como dormiremos no amanhã
quando a cama de hoje mantém-se desforrada
insone
a salutar luta em
ser servil
praticar a genuflexão, mesmo amputado
ter a consciência de que
os deuses estão do nosso lado
aqui
não é necessário fechar os olhos
abram, olhem!, são todos divindades
em progresso
em busca de uma felicidade errônea
por isso enaltecendo valores sem valor
o amor dos sonhos
completar-se como, se a moeda de troca é incompleta?
o troco das paixões
poucos amam devidamente
sem apegos lancinantes
expectativas impraticáveis de que o outro seja seu salvador
dali não se desgarrando
e afundam ambos para além do buraco
porque o abismo é inevitável
mas há os que caem e os que afundam
que tornam o solo, por mais viçojo, movediço
em um só pensar.

e eu ainda penso em nós, se realmente
evoluimos com as tundas constantes
ou lapidamos nossas tumbas
num caminho direto ao cataclismo espiritual
será, morena?
que o que eu te sirvo
não serve para nada?
são, minhas palavras, apenas do paladar
e não das veias imaginárias
que percorrem minha alma?
se, em sonho ou intervenção divina, Deus sentasse conosco
e me aconselhasse afastamento
eu seria o primeiro
a partir nosso abraço.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

contacto.

Assim, na exaustão do cigarro, apago as fotos na mente esfumaçada de um insone. Lembro-me da sensação de pele quente, gélidos lábios, o álcool desenhando o hálito noturno, sem imagens, apenas o cheiro e a presença. E o sussuro entre os dentes, pincelado em gemidos, na frente de quem quisesse assistir, o corpo vestido mas entregue, seu sexo ofegante em meus dedos direitos parcialmente escondidos no negrume da longa saia, ignorada, difícil esquecer mesmo após um maço. Não lavo a mão desde então, seis dias, ensaboar-me com a esquerda já se torna hábito, complicado hábito, o sono zomba-me da janela como o torcedor do time rival em dia de clássico, vitória deles, a ansiedade que goleia a mente, talvez esperança, talvez procurar na mesma boate, no mesmo bairro, esse cheiro eu reconheceria de Londres. Bem sei, não deve lembrar de um minuto, completamente embriagada, dividimos uma garrafa de Jose Cuervo em poucos goles, até hoje também o aroma de vômito pós-parto ao inverso, minha mão que nascia para dentro, as roupas ensopadas, a expulsão dos seguranças apenas arrancou-nos risos, tenho a impressão de por um momento a música parar, os olhares convergentes em nossa direção, ela gritava sorrindo aos empurrões, tão fria a rua encharcada pela chuva, afundei os passos nesses raros silêncios com que São Paulo presenteia seus transeuntes nas madrugadas libertadoras, garanto puder ouvir pardais.

Numa parada de ônibus cochilei sentado, ela diolagava com prostitutas (vi ainda acordado) numa esquina pouco aprazível, adormeci e estava bebendo numa geleira com um grupo de pinguins machos, sem suas fêmeas em caça, um menorzinho, cinza quase por completo, assobiava um famoso tango desconhecido, a cerveja de doer os dentes, era manhã, as pontas do sol estragavam a luta da lua, por um momento pensei voar mas era o enorme pedaço de gelo em navegação. Naufragamos e eu despertei com um ambulante atirando um balde d'água em meu rosto, olhei em 360º e não a encontrei, nem as raparigas.

Estarei amanhã, novamente, na casa onde a domei na palma da mão, agora as garras encravadas em mim, na cabeça torpedeada em pensamentos e suspeitas, vou com a mesma roupa, ela reconhecerá, o cheiro, com seu inconfundível perfume em minhas impressões digitais. Reconhecerá.

domingo, 12 de dezembro de 2010

losses.

Perder:

1. ficar privado de, deixar de ter (algo que se possuía), deixar (alguma coisa) extraviar-se;
2. ficar em situação desvantajosa, ter mau êxito;
3. sofrer a perda, o prejuízo de;
4. ser derrotado.



Dedilhou as primeiras cordas aos cinco anos, as virginais notas, inexistentes, reproduziam perfeitamente uma melodia exausta, como de quem ressona, mas lindíssima, profunda. O talento de David era ínsito, ainda de chupetas evocou "Espelho", de João Nogueira, apenas ao ouvi-la, solitário, na companhia do vinil e da viola, a cabeça baixa, pálpebras caídas, hirto, apenas as mãos percorriam espaço no membro de madeira do instrumento-irmão. Consumado: o menino nascera para a música, os olhos de sapoti vidravam ao acompanhar partituras, cifras desenhadas no braço, de longe pareciam gergelim em pão. Quando formou a banda reformara o foco para prioridades outras.

Os arruivados cabelos pendiam ao ombro cheio de sinais. Nunca sentou-se à mesa nas refeições, comia afastado como um empregado, rindo horrores de minhas queixas. Era o mais simples dos garotos, nada exigia em tardes de compras, tinha no sorriso uma despreocupação quase cosmonáutica, como se vivesse em outra galáxia. Arranjou uma namorada asiática muito graciosa, vegetariana e, suspeito, viciada em maconha. O cheiro era inconfundível, e diário. Mas Douglas vestira a túnica das recém-paixões e assim permanecera, hipnotizado por Mizuki, Miuki, nunca decorei. Perdeu-se também nas agruras do mundo, saiu de Porto Velho ainda de espinhas, odiava morar no cu (perdoe-me a expressão) do país, dizia.

E hoje, para o senhor ver como são as coisas, enterro o terceiro, em menos de cinco anos. Por isso eu me pergunto, pastor, adianta reza, pagar dízimo? Porque morrer de tiro, como o primeiro, e de overdose, como o segundo, todo mundo está sujeito, agora cortar a própria carne, observar a vermelhidão da sangria até escurecer-se por completo...quem, pastor, quem? Logo Luís, dos carinhos sem interregnos, das horas e horas enfurnado nos livros, logo ele, ainda de aparelho nos dentes, sempre nos cultos, diferentemente dos outros que cultuavam divindades tão deploráveis. Na carta ele tentou explicar, confidenciou dúvidas, impulsos arduamente restringidos, uma garota que chamava sua atenção, um garoto que o fazia pecar, vontades e anseios sacrificados em nome do Pai, da Igreja, mas a máxima, no meu ver destorcido de mãe que perde um filho, foi uma descoberta, uma fraude envolvendo pastor Montalvão, seu maior espelho, coisa financeira, eu não entendo muito bem.

É, concordo com o senhor, ele estava realmente confuso, podia também usar drogas escondidos, não sei. Agora não importa, vendo os três nesta parede cimentada, um em baixo do outro, três cubículos pulverulentos que representam o fim. À família, resta o pai e meu corpo, porque minha vida perambulará entre os três como os vermes, derradeiros coveiros, à procura de propósitos entre vísceras obsoletas e intransponíveis ossos.

sábado, 4 de dezembro de 2010

do Paraguai.

(A diferença é que o coração da alma pulsa, mas não bombeia sangue).

Seus cachorros perderam os dentes, e minha boca permanece salgada. De choro e pastel de queijo. Através da comida tento saciar o vazio que transgride o estômago, as dores gastrointestinais, parece que o coração lançou mão da aflição previamente tão constante e o lado esquerdo do peito respira sem amargura. O tropel de sentimentos arruinadores resulta, com exclusividade orgânica, em intermináveis gastralgias, longe das enxaquecas, formigamentos musculares, nada, apenas o estômago em borbulhas ácidas. O corpo reclama, mas é maleável. Já para o espírito, o analgésico não é de solução oral, a gotas, é via sofrimento e reparação, sem prescrição médica e com várias contra-indicações; talvez deva ser mantido fora do alcance das crianças. Minha batalha diária é contra a chaga invisível, a sombra interna que acompanha todos os homens, poucos a admitem julgando-se em pleno domínio, reis da ignorância. É preciso relocar os passos das terras sáfaras enquanto há tempo. Se temos alguma coisa nesta vida é tempo, lento e urgente, sufocado de atrasos, perdas e superficialidades.

Stella não me compreendeu. Ou não conseguiu refletir além da impaciência esparsa, o silêncio que tenta evitar a discórdia, porque não calo por desatenção, mas, sim, para aquietar nossas malignidades intrínsecas. Ela viu repulsa em meu incômodo. E acelerou o carro como quem esmaga a cabeça do inimigo zombador, pisando, sem perceber, em minhas energias já corroídas. Não posso recriminá-la, tem também suas algaravias mentais, contudo o vicejar requer zelo coletivo para afastar a selvageria dos fungos de ordem moral que, se desassistidos, dizimam a árdua colheita da harmonia. Amanhã completarei onze meses em Pedro Juan Caballero, trezentos e trinta e cinco noites sem ouvi-la trautear músicas dos Beatles em potporri ao arrumar o invejável guarda-roupa, muitíssimo organizado e com aroma de melancia. Se meus cálculos estiverem precisos, depois de amanhã ela voa ao Canadá, em busca da especialização em moda, jornalismo e moda, o currículo engordando dois tópicos e uma vida farta de incertezas e faltas, em que hemisfério for.

Que o engano me esbofeteie e eu possa lamentar meu desnorteio sozinho. Vejo seu blog, fotos do último São João, a casa ainda de pé. O pai à beira da mesa, ainda de pé. A mãe à beira do fogão, ainda pé. Stella à beira da insanidade, mas ainda de pé. Será? Os sobreviventes cães já não mais latem, só roçam. Amigos, uns de minha época, outros desconhecidos, mesmos sorrisos de fotos, ilusórios, congelados. Que o que eu vejo seja irreal, e Stella, atualmente, já consiga dormir no próprio quarto, sozinha, com a televisão desligada.

Porque eu não consigo.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

por todos os lados.

Os peixes amaciavam
as algas num bolero
oceânico.

Afundei feliz
com o peito encharcado de alegria
e oxigênio
lá embaixo
mesmo encoberto pelos recifes
assisti claramente à tua ascensão
desmentida
despida
despedida de grades incolores.

Nossa ilha está mais praia
perdeu o posto
de cativeiro
e renasceu.