quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

antemanhã.

Poderia fermentá-lo
guardá-lo no forno ameno
chocolate de recheio
meu bolo de palavras.

Prefiro a gema crua
clara longe da estalactite
meus versos despreparados
que apenas trauteiam
inspiração.

Se hoje o dia raiou
antes do meu sono
é porque o sol sentou
na mesa para me esperar.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

um servo.

Minha existência está por acabar
sinto necessidades hospitalares
urgentes,
como as chamas do prédio que oram águas
para agora, o tempo perdido
vencido pelo cansaço
para onde acelerar?
a tentativa de despreender-se dos vícios
o desejo de desbravar o planeta,
enquanto o miúdo universo interior degladeia-se com todas as forças
a mão estendida
que escreve mirando respostas, ajuda
sinto-me mais febril que nunca
quando direciono a mente a ela
aos medos compartilhados
palpites imaturos de como dormiremos no amanhã
quando a cama de hoje mantém-se desforrada
insone
a salutar luta em
ser servil
praticar a genuflexão, mesmo amputado
ter a consciência de que
os deuses estão do nosso lado
aqui
não é necessário fechar os olhos
abram, olhem!, são todos divindades
em progresso
em busca de uma felicidade errônea
por isso enaltecendo valores sem valor
o amor dos sonhos
completar-se como, se a moeda de troca é incompleta?
o troco das paixões
poucos amam devidamente
sem apegos lancinantes
expectativas impraticáveis de que o outro seja seu salvador
dali não se desgarrando
e afundam ambos para além do buraco
porque o abismo é inevitável
mas há os que caem e os que afundam
que tornam o solo, por mais viçojo, movediço
em um só pensar.

e eu ainda penso em nós, se realmente
evoluimos com as tundas constantes
ou lapidamos nossas tumbas
num caminho direto ao cataclismo espiritual
será, morena?
que o que eu te sirvo
não serve para nada?
são, minhas palavras, apenas do paladar
e não das veias imaginárias
que percorrem minha alma?
se, em sonho ou intervenção divina, Deus sentasse conosco
e me aconselhasse afastamento
eu seria o primeiro
a partir nosso abraço.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

contacto.

Assim, na exaustão do cigarro, apago as fotos na mente esfumaçada de um insone. Lembro-me da sensação de pele quente, gélidos lábios, o álcool desenhando o hálito noturno, sem imagens, apenas o cheiro e a presença. E o sussuro entre os dentes, pincelado em gemidos, na frente de quem quisesse assistir, o corpo vestido mas entregue, seu sexo ofegante em meus dedos direitos parcialmente escondidos no negrume da longa saia, ignorada, difícil esquecer mesmo após um maço. Não lavo a mão desde então, seis dias, ensaboar-me com a esquerda já se torna hábito, complicado hábito, o sono zomba-me da janela como o torcedor do time rival em dia de clássico, vitória deles, a ansiedade que goleia a mente, talvez esperança, talvez procurar na mesma boate, no mesmo bairro, esse cheiro eu reconheceria de Londres. Bem sei, não deve lembrar de um minuto, completamente embriagada, dividimos uma garrafa de Jose Cuervo em poucos goles, até hoje também o aroma de vômito pós-parto ao inverso, minha mão que nascia para dentro, as roupas ensopadas, a expulsão dos seguranças apenas arrancou-nos risos, tenho a impressão de por um momento a música parar, os olhares convergentes em nossa direção, ela gritava sorrindo aos empurrões, tão fria a rua encharcada pela chuva, afundei os passos nesses raros silêncios com que São Paulo presenteia seus transeuntes nas madrugadas libertadoras, garanto puder ouvir pardais.

Numa parada de ônibus cochilei sentado, ela diolagava com prostitutas (vi ainda acordado) numa esquina pouco aprazível, adormeci e estava bebendo numa geleira com um grupo de pinguins machos, sem suas fêmeas em caça, um menorzinho, cinza quase por completo, assobiava um famoso tango desconhecido, a cerveja de doer os dentes, era manhã, as pontas do sol estragavam a luta da lua, por um momento pensei voar mas era o enorme pedaço de gelo em navegação. Naufragamos e eu despertei com um ambulante atirando um balde d'água em meu rosto, olhei em 360º e não a encontrei, nem as raparigas.

Estarei amanhã, novamente, na casa onde a domei na palma da mão, agora as garras encravadas em mim, na cabeça torpedeada em pensamentos e suspeitas, vou com a mesma roupa, ela reconhecerá, o cheiro, com seu inconfundível perfume em minhas impressões digitais. Reconhecerá.

domingo, 12 de dezembro de 2010

losses.

Perder:

1. ficar privado de, deixar de ter (algo que se possuía), deixar (alguma coisa) extraviar-se;
2. ficar em situação desvantajosa, ter mau êxito;
3. sofrer a perda, o prejuízo de;
4. ser derrotado.



Dedilhou as primeiras cordas aos cinco anos, as virginais notas, inexistentes, reproduziam perfeitamente uma melodia exausta, como de quem ressona, mas lindíssima, profunda. O talento de David era ínsito, ainda de chupetas evocou "Espelho", de João Nogueira, apenas ao ouvi-la, solitário, na companhia do vinil e da viola, a cabeça baixa, pálpebras caídas, hirto, apenas as mãos percorriam espaço no membro de madeira do instrumento-irmão. Consumado: o menino nascera para a música, os olhos de sapoti vidravam ao acompanhar partituras, cifras desenhadas no braço, de longe pareciam gergelim em pão. Quando formou a banda reformara o foco para prioridades outras.

Os arruivados cabelos pendiam ao ombro cheio de sinais. Nunca sentou-se à mesa nas refeições, comia afastado como um empregado, rindo horrores de minhas queixas. Era o mais simples dos garotos, nada exigia em tardes de compras, tinha no sorriso uma despreocupação quase cosmonáutica, como se vivesse em outra galáxia. Arranjou uma namorada asiática muito graciosa, vegetariana e, suspeito, viciada em maconha. O cheiro era inconfundível, e diário. Mas Douglas vestira a túnica das recém-paixões e assim permanecera, hipnotizado por Mizuki, Miuki, nunca decorei. Perdeu-se também nas agruras do mundo, saiu de Porto Velho ainda de espinhas, odiava morar no cu (perdoe-me a expressão) do país, dizia.

E hoje, para o senhor ver como são as coisas, enterro o terceiro, em menos de cinco anos. Por isso eu me pergunto, pastor, adianta reza, pagar dízimo? Porque morrer de tiro, como o primeiro, e de overdose, como o segundo, todo mundo está sujeito, agora cortar a própria carne, observar a vermelhidão da sangria até escurecer-se por completo...quem, pastor, quem? Logo Luís, dos carinhos sem interregnos, das horas e horas enfurnado nos livros, logo ele, ainda de aparelho nos dentes, sempre nos cultos, diferentemente dos outros que cultuavam divindades tão deploráveis. Na carta ele tentou explicar, confidenciou dúvidas, impulsos arduamente restringidos, uma garota que chamava sua atenção, um garoto que o fazia pecar, vontades e anseios sacrificados em nome do Pai, da Igreja, mas a máxima, no meu ver destorcido de mãe que perde um filho, foi uma descoberta, uma fraude envolvendo pastor Montalvão, seu maior espelho, coisa financeira, eu não entendo muito bem.

É, concordo com o senhor, ele estava realmente confuso, podia também usar drogas escondidos, não sei. Agora não importa, vendo os três nesta parede cimentada, um em baixo do outro, três cubículos pulverulentos que representam o fim. À família, resta o pai e meu corpo, porque minha vida perambulará entre os três como os vermes, derradeiros coveiros, à procura de propósitos entre vísceras obsoletas e intransponíveis ossos.

sábado, 4 de dezembro de 2010

do Paraguai.

(A diferença é que o coração da alma pulsa, mas não bombeia sangue).

Seus cachorros perderam os dentes, e minha boca permanece salgada. De choro e pastel de queijo. Através da comida tento saciar o vazio que transgride o estômago, as dores gastrointestinais, parece que o coração lançou mão da aflição previamente tão constante e o lado esquerdo do peito respira sem amargura. O tropel de sentimentos arruinadores resulta, com exclusividade orgânica, em intermináveis gastralgias, longe das enxaquecas, formigamentos musculares, nada, apenas o estômago em borbulhas ácidas. O corpo reclama, mas é maleável. Já para o espírito, o analgésico não é de solução oral, a gotas, é via sofrimento e reparação, sem prescrição médica e com várias contra-indicações; talvez deva ser mantido fora do alcance das crianças. Minha batalha diária é contra a chaga invisível, a sombra interna que acompanha todos os homens, poucos a admitem julgando-se em pleno domínio, reis da ignorância. É preciso relocar os passos das terras sáfaras enquanto há tempo. Se temos alguma coisa nesta vida é tempo, lento e urgente, sufocado de atrasos, perdas e superficialidades.

Stella não me compreendeu. Ou não conseguiu refletir além da impaciência esparsa, o silêncio que tenta evitar a discórdia, porque não calo por desatenção, mas, sim, para aquietar nossas malignidades intrínsecas. Ela viu repulsa em meu incômodo. E acelerou o carro como quem esmaga a cabeça do inimigo zombador, pisando, sem perceber, em minhas energias já corroídas. Não posso recriminá-la, tem também suas algaravias mentais, contudo o vicejar requer zelo coletivo para afastar a selvageria dos fungos de ordem moral que, se desassistidos, dizimam a árdua colheita da harmonia. Amanhã completarei onze meses em Pedro Juan Caballero, trezentos e trinta e cinco noites sem ouvi-la trautear músicas dos Beatles em potporri ao arrumar o invejável guarda-roupa, muitíssimo organizado e com aroma de melancia. Se meus cálculos estiverem precisos, depois de amanhã ela voa ao Canadá, em busca da especialização em moda, jornalismo e moda, o currículo engordando dois tópicos e uma vida farta de incertezas e faltas, em que hemisfério for.

Que o engano me esbofeteie e eu possa lamentar meu desnorteio sozinho. Vejo seu blog, fotos do último São João, a casa ainda de pé. O pai à beira da mesa, ainda de pé. A mãe à beira do fogão, ainda pé. Stella à beira da insanidade, mas ainda de pé. Será? Os sobreviventes cães já não mais latem, só roçam. Amigos, uns de minha época, outros desconhecidos, mesmos sorrisos de fotos, ilusórios, congelados. Que o que eu vejo seja irreal, e Stella, atualmente, já consiga dormir no próprio quarto, sozinha, com a televisão desligada.

Porque eu não consigo.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

por todos os lados.

Os peixes amaciavam
as algas num bolero
oceânico.

Afundei feliz
com o peito encharcado de alegria
e oxigênio
lá embaixo
mesmo encoberto pelos recifes
assisti claramente à tua ascensão
desmentida
despida
despedida de grades incolores.

Nossa ilha está mais praia
perdeu o posto
de cativeiro
e renasceu.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

pré-visão de temporeal.

"O tempo está no tempo. O tempo é para imaginar."

ela chora
mil dores num dia-ano
ontem, hoje, amanhã
serra-me o espírito em corpo
desgastado e indisposto
como o pente do fuzil sem munições
pós-guerra.

queria a paz do berço.

aninhar teus dilemas ao silêncio
conseguir ser mais rápido que as horas
tornarmo-nos ponteiros
do nosso próprio relógio.

mesmo as tartarugas
obtêm incontáveis recordes
se souberem apreciar.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

amor de rodas.

O mesmo nome, a mesma idade. Coincidências entre famílias tão distintas. Todos os elementos cimentavam de ouro o início de um romance conceitualmente impecável, perfeito. O garoto experimentava, pela primeira vez, uma concreta estória de amor, além das películas dos filmes que tanto ovacionava, uns nem tanto. Tentou não atemorizar A garota, sobrevivente de um assombroso primeiro namoro, cuja dolorosa experiência pouco atrapalhara a nova, totalmente nova. Assim foram os iniciais toques, as lágrimas compartilhadas, os corações que expeliam, palavra por palavra, camuflagens então desconhecidas, o começo dos entraves, lágrimas mais graves, suores menos dissolúveis; de um lado, familiares frios e ausentes, do outro, chamas sufocantes, e os dois percorriam, num entrelaço de almas, o trânsito natural das coisas. Ora com sorrisos, ora desesperançosos, porque o amor se cultiva e sustenta na esperança. A falência de um remete, automaticamente, ao préstito fúnebre de seu complementar.

Hoje, mais de um ano depois, o rapaz e a moça se mantêm insistentes no lindo labirinto de amar. Feriram-se, anteontem, arranhões bestas, mas que em certos momentos possuem a destrutiva força de um genocídio. Ontem os vi, cicatrizados e maravilhados com a calda do sorvete de uma delicatessen no Centro. Pergunto-me se amanhã ainda resistirá em suas bocas o sabor de sobremesa, e até quando. Não saberemos. Porém adoro visualizar seus futuros, recheados de paz e compreensão, novas e inevitáveis dores melhor manuseadas, festas para as crianças, o dorido enterro do melhor amigo, cachorros, cachaças, abraços se partindo para em minutos se reconstituírem. A vida é feita de reconstruções. E não terminarei este texto de forma definitiva, com conclusão ou desfecho satisfatório; prefiro a estrada, que um dia pode amanhecer ponte ou transcender-se em mar. Quem tenta adivinhar permite o escape do agora, latente e vivo. Sobra-me torcer. Por ele e por ela. Por mim e por você.

Sem fim

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

from guts.

Não me compreenderiam. Mantêm-se ocupados na perquirição de ácidos mais intensos, distraídos em subornadas orgias físicas e psicológicas permitidas para menores de dezoito anos. Minha ínsita tendência à solidão desperta dedos-juízes, de esquizofrênico a maníaco-depressivo, a lista de apostas é grande. Inacreditável esse vício das pessoas, ou mecanismo de defesa, em apontar doenças aos outros cujas diferenças causam repulsa às suas eufonias particulares, como se ter câncer fosse mais indigno do que se masturbar às custas da infâmia corporal sofrida por milhares de mulheres rendidas ao universo da prostituição, por exemplo. E não são apenas vídeos eróticos; é o registro de uma realidade quebrantada pela consumpção moral da sociedade democrático-excludente por onde ainda nos rastejamos. Sim, também pertenço à universal categoria dos que julgam, no entanto assumo minha criminalidade de olhos inchados e envergonhados, em busca do póstero estado de perfeição anímica pelo qual todos vivem, mesmo inconscientemente. Há de se respeitar os variáveis estágios evolutivos de cada ser, contudo é impossível deter um vômito.

A entorpecida cólera ativa-se em diarréia de reflexões e sentimentos transferidos para um pedaço de papel virtual de restritíssimo alcance, não me entrego, não enquanto caminhar; perseguirei a lucidez em indecifráveis micróbios, o microscópio da vida sempre a postos, no ônibus, no filme, na esmola negada, na irritação sem aparente motivo. Sigo a guerrilha na tentativa de decalcar Gandhi, ler os tão-desconhecidos olhos de Jesus, longe de nobre posição, o ápice não é meta para o amanhã; incontáveis etapas gritam ultrapassagem. A facilidade não transpõe o estágio de palavra, inexiste neste mundo, coarctado e lôbrego mundo cujas crias se anavalham entre si numa indomável azia global que desvirgina, como resultado, valores fundamentais ao passo contínuo e anódino. Fraqueja o estômago, os pés porfiam com o terreno custoso e abrem-se os portões aos pensamentos movediços; todo homem é um homem-bomba. Que tem, porém, a oportunidade de ser coroado com muitos mais do que 72 virgens, se acionar o botão do conhecimento em defesa da vida. Em quantas mãos a educação é manejada afetuosamente? Quantas nações fatiam sabedoria de mentes puras? Independente de crenças, discrepâncias políticas, língua nativa ou cor, nós precisamos saber. Eles precisam saber.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

anotações - madrugada de 3 de novembro de 2010

" Os hóspedes ressonam o dia mais espremido do ano nos quartos, busco apagar os cigarros intermitentes mas fracasso, a fumaça de sempre. Hoje sentei no terraço e puxei uma cadeira para Deus. Pude sentir um ardor na garganta, ao duvidar sua existência primordial, porque naquela cadeira Ele não estava, porém uma de suas células parecera vibrar diante de meus olhos, minúscula e quase imperceptível, era uma pequenina flâmula invisível que me fez suspender a cabeça para trás, o frio do inferno queima, as toalhas jogadas ao longo da semana, desistir nunca foi uma escolha, muro após muro aprendi a me reerguer, a vacina mirava-me flutuante e, em frações de segundo, senti seu remédio no centro da testa. Está aqui, o ponto que indica: o incompreensível."


" Meia noite e meia, o abafado do quarto me impede de progredir o texto preterido. Oscilações continuam constantes no núcleo espiritual, a nuca como um imã de angústias, permanecem as vontades. De gritar, de sumir, de esgotar até o limite as profundidades humanas. Resta-me deitar; en sueños yo puedo alzar vuelo sin gasolina."


"Direções não faltam; o que me escapa é o controle do transporte."


"Em uma única interrogação residem centenas de sangrias. Em uma simples resposta, o estancamento."


"De todos os homens do universo, espelho-me apenas naquele cujos pensamentos o direcionam à luz do esclarecimento, pois quem segue exterminadores da elucidação vagará pelas trevas da ignorância aos risos, achando-se afortunado, e cairá, inevitavelmente, em abismo de demorada reparação."


"Ontem, o erro. Hoje, a conscientização. Amanhã, o passado."

sábado, 30 de outubro de 2010

retorno.

O avião manteve-se em espantoso equilíbrio mesmo entre as nuvens, ondeava suavemente como o corpo que se remexe ao mais calmo dos sonos, meus pés aos poucos deixava o chão do transporte em liberdade e os pedais do nervosismo perderam a constância, dando lugar à serena estaticidade. Reaberto o céu, avistei o sol em sua desistência diária, tão próximo que tocá-lo passou-me em pensamento como possibilidade. Eram cinco e trinta e quatro, em menos de uma hora aterrissaríamos em Recife, papai se distraía com um filme de Tarkovsky em seu recente DVD portátil, tinha o estranho costume de, quando perguntado sobre o que estava assistindo ou lendo, respondia mencionando o escritor, diretor, sem jamais dizer o nome da obra. “Um filme de Kurosawa, o último de Saramago”, e retornava a atenção às histórias que tanto idolatrava. Evitei perguntar o título, então, encostando a cabeça na esperança de um cochilo abreviar a chegada, o chope na praia, o cheiro de mar.

Despertei com a voz do comandante, a maioria das pessoas ao redor tinha no rosto a expressão de quem retorna da guerra, a turbulenta comunhão entre esgotamento e alívio, dor e paz. Papai assim estava. Um pouco assustado, desejei um espelho, provar que minha felicidade não tinha olheiras. Adentrei num obscuro paul de pensamentos naqueles últimos instantes de viagem, a distonia mental impossibilitou-me até de perceber o choque das rodas no solo, de olhos abertos eu não enxergava nada além de um abissal oceano de dúvidas e receios. O que me traria a volta? Novos projetos, antigas fissuras, para onde apontar os dedos cansados de se fecharem em murro? Reintegrar-se à egrégia aura acadêmica, mais seis meses, suportar o campus de hematófagos comunicadores sociais, o jornalismo flagicioso encoberto pela luz superficial de homens-fuzis. Liquidificado pelas náuseas do espírito, desci do avião ao lado do velho, puto por ter de interromper o filme já em seu desfecho. Meu irmão nos aguardava com a esposa, a frieza na recepção calorosa era visível, mesmo assim senti-me confortado. O habitual congestionamento na Mascarenhas de Moraes reforçava a certeza de estar novamente no aconchego uterino, o ar sem ar, desincronização dos semáforos, eu em trânsito, mas definitivamente em mim.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

jangadeiro.

Meu mar me abandonou, amor. Só areia e rocha neste sertão litorâneo, sobrou foi dor inundada, eu bem suspeitei. Não éramos mais os mesmos, carinho, o tempo repeliu carícias como o intenso brilho do sol afasta pupilas. Ardeu demais. Incêndio irreparável, devastando minhas plantas, olha as folhas sem cor, enterradas aos pedaços. Agora é tudo uma coisa só: areia e cinzas. Os coqueiros, dá pra enxergar, afeto?, secos, sem frutos, igualzinho a mim, um côco ao inverso, escuro por dentro. E eu nem culpo o estrangeiro. Quais perspectivas tenho, quando danado o continente trocará de lado e a neve me contemplará com um casarão de jardim e garagem? Acho difícil. Quase impossível, abraço, um guindaste me agarrar pelas costas e me elevar à classe superior. Eu que estou nem aí pra dinheiro, verde só meu matagal, azul?, azul do meu céu bipolar, somente ele, muito obrigado pelos conselhos, daqui eu não saio, não. Pra alimentar piada na boca do povo? Porque a graça de rir dos outros é covardia de quem não se alcançou. Ainda perambula dentro de si, como larva presa no casulo.

É revolta de furacão, mesmo, mas de que adianta? Tirar o teto, rachar as paredes, vá, me diga, de que vai me servir matar o canadense se junto com ele a alma dela se enterrará? Prefiro minha solidão companheira, desde quando fazia castelinhos na praia, ninguém via mas eu ria, porque mandava nos soldados de palitos de picolé. E os amendoins cozidos eram as cabeças dos traidores que rolavam à cova d'água, por trás da colossal construção, e eu ria. Só, como um lunático, desde menino. Por isso me apeguei tanto, paixão, quando ela fez de mim sua morada. Era um dilúvio de saliva, ali mesmo, naquela varanda sob os olhos do mundo, lembro como fosse hoje, ela em cima, me remando, e a cadência levando-nos aos mais remotos pedaços de chão do mundo, duas marolinhas, sem pressão atmosférica, apenas encanto. E perdoe eu me avermelhar deste jeito, viu, ficar com o rosto como quem tomou banho, desculpe pelo embaraço. Ela parece ter ativado, ao abandonar a aldeia, um interruptor dentro de mim para, sempre que meus pensamentos a visitarem, uma discreta cachoeira escorrer dos olhos como agora.

Mas estou melhorando. Achar você, nessa gaveta empoeirada pelas estações, me trouxe um pequeno conforto. 3x4, pequenina e simétrica, gigantesca ao meu coração de pus. Sorte sua, ter o rosto dela impregnado ao seu, ela sorrindo, fazia tempo ela não sorria assim pra mim, e pra você ela fará isso para sempre. Não é inveja, ou talvez até um pouco, não ligue para minhas falhas. Só peço que se mantenha assim, viva, mesmo perdendo cor, textura, viva para o mundo, viva para mim, que mão nenhuma a rasgue, parta no meio como ela me fatiou. Eu que nem tenho carteira para guardá-la devidamente. Vou colá-la na porta da geladeira, pode ser? E que me nutra a cada alimentação realizada, a força da carne, observa-me daí, enquanto durmo, enquanto pesco, durante os recessos mais angustiantes. Eu hei de me restabelecer, prometo, nadar longos minutos como antigamente, recuperar o peso, se ela me encontrasse deste jeito capaz de rir na minha cara, perguntar se contraí aids. Vai que um dia o navio em que ela está naufraga, o avião pousa forçado aqui mesmo, nas mesmas ondas onde tanto dançamos flutuantes, os pés sem tocar o solo, o sol tocando-nos de longe. Minha vitalidade juvenil deixou rastros, ainda consigo resgatá-la, ao contrário de Simone. E eu não consigo cumprir a estúpida promessa de jamais repetir seu nome, parece maldição de Zeus, basta olhar a rede que a última sílaba se transforma em preposição; de Simone. O sofá, a banheira, meu antigo som portátil, tudo. Tudo é dela. Sempre foi. E o meu medo é nunca deixar de ser.

Um ano e dois meses não é nada, é? Daqui a pouco, entre uma chuva e outra, esquecerei sem sequer lembrar que esqueci, sua imagem permanecerá mas como um mancha que um dia sangrou e feriu, sem incomodar, apenas ali, presente, e inseparável. Ou você acha, minha linda, que eu vou envelhecer remoendo essa dorzinha insuportável? Com essa idéia absurda de te repatriar em minhas coxas, ein, miserável, você acha que eu sou o quê?, um mísero platelminto sem reações?, tenho 29 anos na cara, não vou deixar que uma putinha de Recife me arranque os cabelos precocemente. Meu Pai, mãe do céu, o que é que eu fiz, não, não, onde está a cola, cadê a porra da cola, puta que pariu, minha vida, me perdoa, você conhece minha impulsividade. É mais fácil eu colar os dedos do que seu pequeninos detritos, e ainda mais estas lágrimas de bosta a me atrapalhar o serviço, não dá. Desculpa, é impossível, nem com costura, tudo amassado, picotado, não há como reparar. Desculpa. Não há.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Para vossas almas; especialmente à minha.

O labirinto nunca estreitou tanto. Perdido em frio, ziguezagueando por linhas retas, quais metas, em que ponto finquei as solas, no solo, só. E a fraqueza que não permite passos longos, movimentos ágeis, decisões. Tudo machuca, por todos os lados, uma balsa atravessando a testa, sangue até o pé, escorre, escorre, forma a poça onde afundo, submerso. Tudo adoece, como com os de imunidade baixa, uma voz mais alterada, um roteiro preguiçoso, uma foto desfocada, resulta em febre e indisposição. O espírito a se espremer no corpo, como trabalhadores em transportes lotados, espaços preenchidos de dor, preocupações, por se arrebentar e escorrer, escorrer, pelo ralo inevitável da morte. Às baratas. Porque morrer é olhar-se no espelho íntimo, real, não o pedaço de matéria onde nossa suposta beleza se envaidece por horas a fio. Fios perfeitos, maquiagem impecável. Pra virar rato. Gigantescamente humildes. Porque se há algo a se aprender com um rato, é a humildade. Aprender a viver no esgoto como quem se bronzeia à beira de uma piscina luxuosa. Roer o mínimo. Mas não, a ambição de gavião voa mais alto, expandir novos horizontes em poucas horas, valer a pena, a vida tem que valer a pena, pena, sinto apenas pena, pois no fim não sobrará uma pena sequer de lembrança para os que ficarem. Desistam da tola ideia de ser alguém na vida. Reconhecimento. Trajetórias resumidas a papéis. Amarelados pelas estações. A essência do universo vagueia dentro de cada um, escalando tripas, aterrissando em pulmões, basta olhar ao inverso, verão claramente, como límpidas nuvens numa agradável tarde de verão.

terça-feira, 29 de junho de 2010

training.

Tinha um beija-flor tatuado na nuca. A ave beijava o sobrenome, o néctar, as asas como hélices, estáticas no desenho. Eram pretas, as asas, o beija-flor, a flor, a penumbra íntima que alcançava a arte no corpo branco e rubro de Simplícia. Lia um livro volumoso, a domadora de beija-flores, a cabeça parecia magnetizada pelo “O Idiota”, de Dostoiévski. Porque era autor da moda, a universidade tinha grupos de estudos literários, Fiódor era um dos deuses aclamados, entendo o porquê mas discordava veementemente, sempre os de fora tinham ouro nas veias, Bandeira fora maior, Lispector, Drummond, Graciliano. Não, não era xenofobia, porém sempre priorizei nossa produção, célebres pensadores da mesma pátria-canil cujas chagas e conquistas eram tão belamente narradas. Dostoiévski estava um degrau acima de muitos, mas na escadaria inferior de tantos outros. Devo ter pensado alto, em algum momento, percebi seu ar de reprovação a me metralhar, os dois olhos de limão em brasas, ardendo e cuspindo, O discernimento é uma glória, não é mesmo?, E como é!, eu ria maliciosamente, ela em pensamentos me esfaqueava, não há coisa mais deliciosa que raiva feminina. Abracei-a como quem brinca, e eu não brincava, mas jamais fomentava discussão com Simplícia, lembro-me de apenas um forte desentendimento à porta de uma casa de shows. A babel me tonteava tão quanto um furacão, havíamos usado LSD na mesma noite, horas antes, ela andava sobre águas e sorria sem pudor, a alça da blusa arriada, eu ouvia mosquitos, aranhas, as patas saindo pelo meu nariz, eu não sei se gritava para mim ou para os outros, mas lembro claramente de sua imagem, vociferava contra mim, brilhante e esverdeada, apontava-me o dedo como quem aponta uma arma carregada, eu tremia e ria e chorava, tinha vontade de arrancar a língua. Terminamos a noite ali, um pouco mais à frente, os dois deitados na areia imunda de Boa Viagem, os riscos que faziam rir; assalto, estupro e tubarão. Nadamos nas ondas frias, numa das noites mais quentes do ano na cidade. E em mim.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Como alimentei os vermes.

A ilha anoitecia brumosa
pouco se via, mesmo à luz da lua
defenestrado e semi-cego, apanhei uma garrafa na adega
escutava talheres se suicidarem às minhas costas
o chão da cozinha em bernarda
eu sabia onde Ferro enterrara a droga, mas relutei
em minha posição de platelminto me mantive
calado, débil
e rastejante.

Ao afundar os pés na areia chorosa da noite
um reboco meu desgarra
cedo à gravidade, e deito como quem morre
seria, talvez, meu atestado de óbito
permanecer, fugir, arrancar-me a vida
a impossível alforria que voava para outro hemisfério
e lembrar
que tudo começou há cinco meses
cem gramas, um final de semana
para minhas pernas serem alvo de serrotes
já sentia a fetidez da necrose
infestando minhas narinas vermelhas
o pó do início
em pó no final.

As imarcescíveis lembranças de Dalva golpearam-me como facas
ao lugar de dor, uma minúscula esperança
de sorrir uma vez mais
esparramar minha boca por sua pele
porque a simplicidade ocupava nossas tardes tão manhãs
as ondas trêfegas quebravam surpreendentemente calmas
e a cada visita, carregavam-me um músculo
vou me entregar, Pai
ao departamento oceânico dos desfalcados
prefiro uma partida analisada, por mais angustiante
juro como vou
não é preciso se levantar, posso rolar até o definitivo encontro com as águas
e deixar.

Além, sobre os aviões, poltronas de nuvens
aquém, sob os passos, correntes eletrificadas
quem semeou a realidade póstuma?
um mudo
um medo
como o que sinto nesta escuridão infinita
desistindo da ideia covarde
meu celular vibra, meu coração
a mensagem de Ferro diz que,
se honro os testículos,
devo retornar imediatamente à casa-purgatório
o vinho se esgota
e esgotado refaço o caminho que há pouco fiz
ao contrário.

Aberta a porta
de incertezas e questionamentos
em segundos tornou a fechar
como as automáticas assim fazem
quando ninguém por perto está.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

pedaço solto.

Fortunato transformou-se num terçol sem cura. Sua presença me incomodava tal como uma rasura em documento original, corretivo algum seria capaz de amenizar o martírio, as orações não surtiram efeito. Deus sabe o quanto pelejei, promessas para cada santo, foi meu erro este fuzuê de preces que apenas pediam milagres, nunca agradecimento. Eu assistia à decadência dele, inevitavelmente a minha, mas fiz o que fiz pelas crianças, eu não teria a coragem de abandoná-lo naquele estado, se fôssemos só nós dois. Perco as contas dos móveis espatifados no chão, das dezenas de lavagens do banheiro por semana, para tirar a catinga de vômito, as roupas cagadas. Enrouquecia de tanto chorar, eu não ouvia mais música, não comprava mais vestidos nem broches para enfeitá-los, Fortunato falecia aos poucos e era à minha volta que o caixão se fechava. Suas palavras, antes tão doces e excitantes, tornaram-se infrutíferas, não havia sabor, apenas uma azia cíclica, da cachaça pra ele, dele pra mim. Cheguei ao ponto de tapeá-lo. Ele para mim nunca levantou um dedo, estivesse sóbrio ou embriagado, e me envergonho pela agressão, minha cabeça fazia manobras e as ideias escapuliam sempre que eu passava as mãos nos cabelos. Perdi a compostura, ao vê-lo agarrado com uma putinha de dezenove anos, quase em frente de casa, dançando com a mão dentro de sua saia, doem-me os nervos só de lembrar. Dei nele e nela, empurrei-a rua afora e o pus pra dentro, embaixo do chuveiro. Foi o ápice, como dizem, ali o divórcio me pareceu tão óbvio e necessário que tive nojo de mim pela burrice, ou cegueira, ou esse capuz invisível que cobre os sentidos dos apaixonados. No outro dia de manhã já estava na casa da minha mãe com Alfonso e Amélia sob as asas, alojamo-nos no meu antigo quarto, e eu me senti num lar como nunca. Fortunato ligou todos os dias durante um mês, quis ver os filhos, mas meu desgosto era tanto que me passei de juíza e o proibi de visitá-los. E quanto mais eu via sua silhueta se desfazer ao dar meia volta do casarão de minha mãe, mais aquele aperto do peito das viúvas me assolava, fazendo-me sonhar com a ressurreição do marido morto. Pois aquele do qual eu sentia falta não sobrevivera aos dias tempestuosos, encontrava-se enterrado e em ossos, vivo apenas nas pueris lembranças de quando o convívio cheirava a leite condensado e pipoca. Tranquei-me em mausoléu e assim respirei por mais algumas semanas umbrosas, longe de Fortunato e do mundo exterior. Graças a uma pneumonia de Amélia presenteei com novos ares meus pulmões, ficamos no hospital por dois dias, o corpo aos poucos recuperou o peso, cimentei forças e até hoje continuo, sem arrependimentos nem saudade de nada. Só em algumas noites mais demoradas um frio súbito sussurra à nuca e a presença de Fortunato me parece materializada junto a mim. Então durmo.

domingo, 13 de junho de 2010

chapter.

Esperei do lado de fora, sentado numa espaçosa cadeira rubra, em frente à recepcionista do gabinete do Senador. Era de madeixas democráticas, partes louras oxigenadas, outras de um negro natural charmosíssimo. Nas pálpebras, uma tintura violeta, clara e humilde, como quem finge não chamar atenção, que combinava perfeitamente com duas rosas postiças decoradas na sua mesa em L. Atendia aos telefonemas com delicadeza cinematográfica, declamando bom dia como um sopro, em suspensão, meus olhos salivavam ao som daquela melodia fulminante. Serenamente atordoado, lutei contra a impulsão que pulsava dos calcanhares ao crânio, aquela vontade quase assassina de olhar sem intermitências o decote desafiador. Poder repousar minha carne naquela pele de veludo, qualquer pedaço que fosse, e meus testículos exumariam paz. Apanhei a agenda da bolsa, subitamente, e comecei a escrever sem controle, como um psicógrafo. Não faço a menor suspeita do conteúdo do texto por, em seguida, desmatar a folha e transformá-la em bola, arremessada no cesto de lixo mais próximo. Trêmulo como uma bandeira ao alto, redirecionei a vista à miragem divina, me encarava por cima do monitor, dois faróis de xenon incandescentes, permaneci estátua, aceita uma água, café, eu não tinha respostas, alguém por mim disse sim à primeira opção, e ela levantou-se, sincronizada com meu pênis. Dobrei as pernas, ela curvada enchendo o copo, a cueca me sufocando, obrigado, ela abriu um sorriso acanhado e vadio, enquanto de um só gole esvaziei o vidro cilíndrico. Perguntei onde era o banheiro, querendo chamá-la comigo, no final do corredor, que percorri me equilibrando nas paredes. Fechei a porta de chave, sentei vestido no vaso e respirei. De olhos fechados, fundo. Confesso que a ideia de masturbação me visitou, mas como um absurdo, eu estava em horário de trabalho e, se fosse para gastá-lo com algo do tipo, que fosse dentro da recepcionista. Enxaguei a cara, ainda podre. Ao retornar à sala, o Senador havia saído, estava ao lado da porta principal me aguardando para o início da viagem. Vamos, quem é coxo parte cedo, e girou a maçaneta, ela acenava, não para mim, mas fui recíproco ao meu desejo. Ela então pôs o olhar em mim e mostrou a dentição, até logo, eu repeti, teria que rever aquela mulher, marcar um jantar, fodê-la num motel além das minhas despesas, valeria a pena. Vinho, bobó de camarão e sua boceta morna a me abrir o apetite. Viajei imaginando a volta, uma orca encalhada na cabeça, tanto peso que adormeci. Na loteria dos sonhos, acertei meus pais no aeroporto, vibrávamos o alcance de algum objetivo jamais esclarecido durante a quimera. Papai gargalhava fumaças e tosses, de óculos escuros e com o terno branco que sempre apreciei, enquanto mamãe gesticulava como um professor, relatando histórias da minha infância de modelo. Eu ria como menino, sem precaução no volume, e eles não me censuravam, apesar dos olhares reprovadores em volta. De repente uma voz remota brotou no ar, vocês precisarão pegar um atalho, a estrada foi interditada há pouco, era um policial rodoviário. Acordei babando, o motorista do Senador já entrara no caminho de barro. Aproveitou para uma pausa. Mijar.

terça-feira, 8 de junho de 2010

frag.

O apartamento dialoga comigo. Pede faxina há duas semanas, desde a última vez que Mônica prestou seus serviços e retirou alguns gramas de grude dos azulejos, imunizando-os com uma cera de cheiro angustiante que compete, pau a pau, com os trajes de um gari após um longo dia de trabalho. Certos produtos de limpeza são definitivamente sarcásticos. Parasito pela geladeira em busca de algo que tranque a boca do estômago, cujos resmungos parecem sem fim, quando a mente envia a informação que não se tem mais nada a fazer. Comer é paliativo à inércia, intransponível como uma cordilheira infinita, nestes dias. Pequeno alento ao alpinista trêmulo, ainda na metade do caminho, sem forças, como se escalasse pela décima vez no mesmo dia. Não há tantas opções, minha negligência interfere em casa, fora, dentro do refrigerador. Menosprezei o salubre zelo sempre presente em minha personalidade, por mais tóxica e barulhenta nas horas dos torpedos unidirecionais. Nunca fui de imitar mudo, aguentar pressões alheias de lábios cerrados, a cada explosão estrangeira minha belicosidade jorrava granadas para todos os lados, não distinguindo o inimigo do aliado, ou do indiferente, como em toda guerra. Com a brancura na barba, e depois nos remanescentes fios da cabeça, moderei o ímpeto ao combate. Continuei zeloso, de menino até hoje, órfão, mas hoje, hoje me vejo despedaçado, procuro os detritos de meus antigos hábitos e nada vejo. Uma catarata de lembranças mescladas mensura a sobra, o quanto daquele eu longínquo ainda dorme em meu espírito; são faíscas, pequeninos blocos de temperamentos, opiniões, visões de mundo. Meu pavor de grandes embarcações é genuinamente meu? Quantas apreciações e desprezos foram formados com o auxílio de sentimentos externos aos que mantenho? Comecei a fumar aos trinta e nove anos. Fui pai antes de viciar-me no tabaco, grande exemplo, e meu primogênito diz, ou costumava, ser culpa dele, cuja vinda ao mundo teria influenciado tal hábito. Como estará Alfonso, céus, perdi também as contas dos anos, creio que faz cinco sem vê-lo, abraçá-lo tapeando as asas das costas, atitude tão usual de um pai. Noto esta febrícula repentina sempre que penso em meus filhos, um ardor sutil mas sufocante, o tempo realmente passou, o meu, ou daquele em que eu estava habituado a ser, comparo-me a determinado veículo cujo combustível não mais se utiliza. Em extinção, fadado a um fim silencioso, despercebido, num distante ferro-velho putrefato, onde apenas as ferrugens indiciam de que eram feitos os irreconhecíveis objetos ali entulhados.

domingo, 30 de maio de 2010

abre los ojos.

Apedrejador como a alma
O rancor instalou-se em mim
Triturador de amor sem fim
Cujo tambor jamais se acalma.

Estilhaços caem sem ti
Conturbados, cem pedras no caminho
Gigantesca coroa de espinho
Como agulhas, em choro, senti.

Nas orelhas, tímpanos rasgados
Sal de lágrima na boca seca
Em chamas o peito, interminável enxaqueca
Panturrilhas e pés afundados.

A farta desnutrição das vinte e quatro costelas
À vista, como ponto turístico
Meus sorrisos tão característicos
Perderam-se à procura dos dela.

Onipotente brancura de luz
Agasalho da minha escuridão
Ao faminto, uma migalha de pão
Que o esôfago ao estômago conduz.


Tolice.

Menti em cada sílaba desses versos inúteis, estúpidas rimas pré-fabricadas, não há um fio de náilon verdadeiro nessas linhas patéticas. A verdade é que tento transparecer algo inexistente, o maior amor do mundo, o maior sofrimento do mundo, lamentações insignificantes. Sigo meu déficit, que às vezes chamo vida, tentando arrumá-lo como alguma história digna de ser contada; ninguém leria, se soubessem o quanto teatralizo, se só pudessem enxergar a vaidade, somente ela, enroscada em cada vírgula posta cautelosamente. O magnífico da literatura é poder transformar em vulcão ativo uma simples chama de vela. E, gostem ou não, há algum brilho no meio disso tudo.

domingo, 23 de maio de 2010

dog day

deitado abro os olhos, mais uma vez
diluído entre insossos ossos descarnados
dó do sol chamejante
deixar-se atrasar, jamais!

devorado o café da manhã, o caminho
diante de outros lutadores, bater continência
dois, três latidos de idolatria
dragões de gelo nos aguardam flutuantes
dejetos atirados em nossas cabeças

deblaterarão os de patas fracas
desistam destas tolas ideias!
domaremo-nos, então, pelos caninos
desânimo qualquer deve ser combatido
domingos assim são
durante os tempos de fome

dóceis como labradores
driblamos as feras de asas
detectando o tesouro à venda
desde cedo é preciso ladrar, por aqui
dar aos caídos a lambida terapêutica
diariamente, para não virar cachorro-quente

dinamitar as estruturas impostas
desintoxicação genuína do espírito
deus pode ser bom, mas está longe
dúbio como um parlamentar solidário
destro, canhoto, ou qualquer que seja

duelos vencidos, barrigas tranquilas
diarréias tão comuns já não mais doem
dentes perdidos reforçam a dignidade
de sobreviver dia após dia.

terça-feira, 18 de maio de 2010

fragmento da obra futura - part III

O câncer permaneceu, mesmo o tumor curado, careca à mostra. Uma sensação de peso, os olhos arriados, como se carregassem lenha, talvez um leproso identificaria-se. No hospital, ao menos existi, ainda não tinha esse aspecto de embrulho, dormia profundamente em algo não tão inóspito quanto esta cesta de concreto onde sobrevivo. Sinto-me como um disquete. Nem insultos me direcionam, a azáfama diária ao inverso, eis minha subcondição; uma verruga ocultada. Aposentei-me da rádio, dos ouvintes, da troca de palavras de peito aberto, via ondas sonoras, a solidão veio como um cometa e estagnou. Logo eu, das piadas sempre afiadas. Logo eu, sempre rodeado pelas mais belas mulheres. Logo eu, Deus. O que mais me assusta é esta demoníaca imprevisibilidade. Por mais duvidosa e cheia de rios, meu pragmatismo tornara a vida estável, de pouca surpresa, tudo como o programado. A doença tumultuou tais estruturas até o desmoronamento por completo, deixando-me sem teto e chão, num precipício de inércia e memórias reluzentes que infestam a massa encefálica de imagens mal editadas. Hoje reduzo-me às vísceras. O vurmo lânguido que escorre como quem rasteja, moendo a mucosa do estômago.

Pelo silêncio, a noite deve estar no fim. Minhas décadas de angústia com o tempo, o deadline por cortar-me a cabeça, faz parte da antiguidade. Inexistem relógios dentro de casa, tenho ideia das horas pelos programas de tevê e pelo som das ruas. Quando os garotos cessam a gritaria da diversão é por volta das nove da noite. Hoje eles não desceram, semana de prova, ou por castigo, talvez. Por isso, meu desnorteio. É inútil ter tal noção quando encontro algum é marcado, filhos não sentarão à mesa de jantar e a manhã de amanhã passará como um sopro. Pesado. De fato, estou velho, a reclamação parece não ter ponto, mas tudo me dói muito, porra. Esta labirintite social, a filariose de vazio, desmaios e vômitos invisíveis acontecem independentemente da minha força de vontade em continuar. Eu quero, viver até os noventa, sofrer com a morte de ídolos de sempre, Woody Allen tem minha idade, quem viverá mais? Espero que eu, mas o mundo discorda, justamente. Gostaria que morrêssemos no mesmo dia, entrássemos juntos no outro lado, ele empurrando minha cadeira de rodas ao relembrar suas musas, a filmagem de Zelig, eu sorriria encantado. Será que já faleci? Li, em algum texto espírita, que certas almas, por algum tempo, não tem a ciência da própria morte e permanecem vagando entre os mundos. Eu não acredito que morri e apenas agora percebi, agora, fitando esta porta de madeira mofada, coberto até a cintura por um lençol sujo, não pode ser. Os carros ainda maltratam o asfalto, preciso tirar a dúvida, ligo para o porteiro?, a cozinha é mais perto. Ouço a tevê da vizinha, sempre chega tarde, posso interfonar. A cozinha é mais perto.

domingo, 9 de maio de 2010

madre.

não escrevo para ninguém
frase batida
tida como simplicidade maquiada
admito, de rosto nu
hoje direciono minhas composições a ti
dos ouvidos sempre abertos
das mãos ávidas por me acarinhar
cujos clamores me doem como uma tesoura recortando a gengiva
tu que me proteges
um edredom blindado
que estia a tempestade para o molhado não me gripar
hoje,
com extrema dificuldade e cautela,
tento desinibir os dedos
e te presentear adequadamente.

quantas vivências
guerras e carnavais
minha miopia atenuada a cada ensinamento
por mais avinagrado
se hoje evoluo, é porque foste a escada
se diferencio o postiço do coração
tudo cabe a ti
suportar atrocidades com leveza na alma
que dificuldade é te escrever
o sono embaralha
uma rajada de palavras sem sentido tentam escapar
seguro e amarro como um cavalo áspero
a ordenação do que necessita ter vida
carregar ao concreto uma infinidade de sensações.

hoje é teu dia
todos são, aliás
mas hoje foi o escolhido por alguém
pelo sistema
não interessa
hoje é preciso não deixar-se esquecer da beleza
do teu espírito
e teu esplendor


mãe,


mais que um elogio
aqui agradeço o privilégio de ser um filho teu
de ter o eterno aconchego do ventre materno
poder rir, chorar, gritar
e ser compreendido.

meu amor não é de guardanapo.

é atmosférico,
e transcendental.

por todas as vidas.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

fragmento da obra futura - part II

Entregue nessa balsa à deriva que é o cotidiano dos homens de idade, pairo sobre os cocurutos estagnados de uma juventude conformista em 3D. Sobrevoo, como uma muriçoca sem muito tempo, à procura de veias palpitantes que arriscam o próprio sangue por ideais ridicularizados ou meramente incompreendidos por milhões. O universo gira como um carrossel desgovernado, a revolução vem dos céus, das nuvens carregadas, do útero dos vulcões convulsivos, a terra trêmula duela contra as forças humanas que lhe privaram a liberdade de antes. Muito antes, quando a sinfonia das gotículas do mar era espetáculo único. Pardais não se perdiam, as pintas das onças tinham mais cor, baleias jamais encalhavam, a chuva era sagrada e sol nenhum mutilava geleiras por vingança. Hoje olho pra cima e sinto como se a esfera terrestre estivesse por se arrebentar. A gravidade nunca pesou tanto. Não é questão de velhice, reclamação de avô. Morro dia a dia, lentamente como um fumante, e o planeta parece ter me dado as mãos e desfalece junto a mim. Eu sei, ainda não sou bobo, a pele é mais sensível nesses momentos, mas os raios solares investiram em material bélico. Quando saio para caminhar, nos dias em que minha caçula não inventa de transar com o namorado, presencio claramente o bombardeio do astro maior. O centro do universo. Complexo de superioridade é, sem sombras de dúvidas, um dos males do século. Não só deste, permitam-me a correção; de todos até então. Júlio César, Alexandre, Nietszche, aquele moço de Titanic. À tarde era rei do mundo, pela madrugada virou gelo. E afundou. Ele e o Titanic. Agradeço aos ensinamentos da vida por ter levado um soco certeiro ao ousar dizer que era o melhor no futebol da vizinhança. Como uma bola de carne, a mão esquerda de Agenor. O gol mais belo que o caruaruense fizera em todos aqueles jogos. Jamais repeti tais palavras, tanto para o esporte quanto para qualquer atividade que viria realizar. De novo. Esses devaneios estão cada vez mais constantes. Não consigo sorrir sem resgatar do passado episódios que tornam o presente mais suportável.


Ontem à noite conversei com duas árvores. Relembrávamos, com nostalgia e umidade nos olhos, os bons tempos dos dinossauros, postergados quase sem rastro pelas eras futuras.

terça-feira, 27 de abril de 2010

cíclico.

era ano de copa do mundo
como hoje
papai entregava-se ao álcool
o cheiro de vinho barato
cada gole representava uma desistência
era ano de festa
de ditadura
foi-se assim
nem no pódio ficamos
era 6 de julho
quando cresci pela primeira vez na vida
e abortei meus pais.


é ano de copa do mundo
como ontem
a televisão do quarto mostra as tempestades de fora
com as minhas ninguém se importa
maldito hospital de mortos
é ano de festa
de eleições
assim será
medalhas tilintam distante
é 27 de abril
finalmente cresço pela última vez na vida
minhas crianças perderam a memória.

sábado, 24 de abril de 2010

fragmento da obra futura - part I

Mastigávamos o vidro em cacos enquanto a madrugada, brilhante e oval, costurava em linhas brancas nossos quatro lábios num só. O gosto das lágrimas anteriores ainda salgava as línguas bailarinas que, de passo em passo, espantavam secreção e medo. Minha precipitada ereção guiou-nos à cama dos seus pais, cuja amplitude fez-me sentir, por um leve instante, como um patriarca, totalmente submisso aos poderes da princesa da casa. Fiz questão de manter os olhos abertos. Mais do que qualquer toque ou suspiro ao pé do ouvido, ver sua boca aberta, contrapondo-se às pálpebras grudadas, em completo silêncio e êxtase, me borbulhava as entranhas de maneira quase insuportável. Não demoramos mais de três minutos, não era necessário; quando a paixão alcança o fascínio, segundos eternizam e equivalem a anos vividos. Ainda me tendo em seu interior, Penny me encarava com um sorriso puro e descansado. Nascia em nós um resistente elo, um filho, éramos dois tijolos ligados pelo cimento na parede da vida. No final daquele onírico mês de maio, alugamos um quitinete onde nidificamos entre móveis mofados e sonhos de orvalho. Nosso simpósio diário edulcorava as horas, tão dilacerantes nos tempos individualistas; arranjamos trabalho em poucos dias, eu como produtor de um programa infantil de tevê, ela de assessora de imprensa num time de futebol em decadência, mas que pagava bem. A repetitiva certeza de que ao chegar ao apartamento aquele par de olhos verdes me receberia com um brilho fulminante minimizava qualquer indício de frustração durante o dia. Assim dialoguei com a vida por pouco mais de cinco meses. A erosão iniciou-se com as viagens. Penny não mais parava em casa, conheceu todo o país a trabalho. O país do futebol. Meu desgosto por esportes apenas aumentava com a constante distância. A perda do entusiasmo novamente, novamente predominou o maltrato da insônia na cama desabrigada. Quando retornava, Pennelope permanecia a maior parte do tempo quieta, tinha plena ciência do rumo que havíamos tomado por má sorte ou relutância do destino. Minha maior angústia era sermos, eu e ela, mais um exemplo de que por mais abrasador e monstruoso que seja o amor, fatores externos têm a capacidade de reduzi-lo a nostálgicas memórias de um tempo irrecuperável.

Uma oferta de emprego tomou coragem por nós e pôs fim à doçura há muito perdida. Retornei ao meu antigo apartamento, mas deixei no quitinete as orelhas, o nariz e a boca. O assobio dos pássaros era o mesmo, o velho uísque tinha seu hálito. O cotidiano mais uma vez um ringue cujos combatentes se ferem, algumas vezes, sem perceber. Inerme, tornei-me alvo dos golpes alheios. Em 29 de novembro de 2008, fui demitido pela terceira vez em minha história. Entregue, rendido. O pressuposto perfeito ao suicídio, lento ou imediato, dependente da força que ainda sobra. As inúmeras possibilidades rodeavam minhas ideias, como um periclitante redemoinho cuja sina inalterável é aniquilar. Cheguei próximo a ingerir uma combinação fatal de comprimidos. Por um pé, ou uma inclinação mais efetiva, não deixei o corpo cair em queda livre d’um edifício, uma filial da tevê. Mesmo coberto de lodo e saudade, a vida me parecia menos sofrida que o despreparo da morte. A glória da tortura, descobri mais tarde, é privilégio subestimado pelos homens que não enxergam a virtude de se ter uma foice incrustada no cérebro.

terça-feira, 20 de abril de 2010

amnésia.

opacidade dominical
desde cedo se instala
lamaçal no piso onde piso
onde o pé afunda estático
a lembrança um eco
vejo uma fazenda e de nada recordo
um pulôver descansado na cadeira
ambos negros, como minha memória
perdida por motivos desconhecidos
sem dor ou sangue aparente


arrasto-me pelo arrozal
há luzes num casebre não distante
lá encontrarei respostas para clarificar-me
já ouço vozes, sim, uma discussão
má impressão sinto, aliado a um tremor no bíceps
vá e não volte!, grita uma mulher de idade na janela
com um chamativo candelabro em uma das mãos
o mendigo sai cambaleante
olha-me sem encarar e continua
desaparece murmurando insatisfação pela espórtula não dada
a senhora me investiga em silêncio
abre a porta como quem convida
entro e sento sem pedir
a mulher parece me conhecer
por respeito e alguns minutos, não dá uma palavra sequer
me chama por Levi, enfim
seu tom melífluo surpreende meu pré-conceito
eu jamais ouvira aquela voz
pergunta-me por que demorei tanto
avisa, quase imperceptível, a chegada de Raul
e pela entonação no nome percebi correr um certo perigo
como um bêbado, pergunto onde estou
mas antes que a questão fosse resolvida
apago

.

um pequeno gato mia aos meus pés
o inchaço no dedão direito lateja à cabeça
também ferida
atropelo uma ferramenta metálica ao tentar levantar
o gato foge
um homem entra no quarto e me aponta uma faca
manda-me deitar e rezar pois meu fim se aproxima
em centésimos de segundo, apanho a arma de sua mão
ele corre, como o gato
sós, eu e a faca
o que me trouxe aqui?
minha última recordação é Tânia no hospital
prestes a parir
de meu indicador direito um sangue sem brilho desliza ao pulso
tiro a camisa e pressiono o ferimento
atravesso um corredor estreito até uma sala de paredes rubras
que lentamente se transformam em um preto claustrofóbico
e infinito

.

a chuva me desperta
o que faço com uma faca na mão de um dedo cortado?
um do pé também me causa dores
meus ombros congelados
a água invade por todos os lados
ilhado, pulo a janela e caio numa piscina vermelha
quatro corpos bóiam simétricos
no tórax de um, cicatrizes alertam:
"1º andar"
Tânia estava amarrada à cama, desmaiada e nua
quase submersa por completa
ao retornar à consciência
Tânia me pôs para dormir

.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

se pa ra ção.

"Com enorme lástima registro-lhe o final de um planejamento. Após recentes episódios de indignação, deixo o cargo no qual construí um nome e cuja durabilidade revivificou meus sentidos, minha interpretação de vida. A incorrigível eiva crescida entre nossas opiniões tornou a vivência sinônimo de morte, esfacelando amizades intocáveis, como a demolição de uma montanha. Enquanto capsulavas a nitroglicerina da realidade, permaneci atento, como um estagiário sedento por aprendizagem, e, de porta em porta, tentava apreender o máximo de ensinamentos tidos como dádivas oferecidas em troca de nada. Meu desempenho não mais foi que irregular, acertos e erros, mais os segundos, mas a falta de compreensão lesou a força de iniciante que em meus pulsos palpitava. A cada acerto, um erro apontado. E o núcleo, nosso núcleo, dissipou-se em meio às angústias, aos prêmios, quando a maior conquista era renegada ao comum, 'todos têm amores', você afirmava inflexível.

O casamento foi um erro. Necessário, como hão de ser os equívocos, mas dor tamanha derrubaria dragões num sopro, sem fogo. Nunca desejei que chegássemos a tal nível. Olhar teus olhos outra vez e dizer pela boca tudo isso, contudo, seria como me crucificar. A casa é sua, sempre foi. Como pode ver, retirei meus objetos pessoais, os vinis que tanto causaram discussões, e espero não ter esquecido nem uma tampa de caneta. Porque o que eu quero esquecer e superar continuará sobrevivendo neste local cujas entranhas jamais desejo voltar a adentrar. Adeus e siga em frente. A vida é muito mais do que eu e você".

Assim, pus fim a 3 anos das mais tortuosas noites que enegreciam os dias, raros como sorrisos verdadeiros. Larguei o texto escrito à mão em cima da mesa da sala, onde tomei uma taça de vinho pela última vez. Em um só gole, esvaziei o que de concreto ainda havia naquele lugar.

sábado, 3 de abril de 2010

needle park.

A primeira seringa, nova e intocada, era destinada a Ludmila, também novata e virgem como aquele objeto tirado do plástico com cautela por Lou, o mentor. Os olhos de Ludmila brilhavam uma expectativa temerosa, esmagava os dedos contra a palma da mão com uma força assustadora; chamou a atenção dos demais. Outros dedos, calmos pela morfina, aterrissaram em seus ombros a acalmando, era Janette, compactada num vestido cor de café que fazia sua brancura reluzir como um refletor na sala nublada. Lou aproximava-se cantando em espanhol, uma mão dentro da calça, outra segurava a seringa como quem segura um bolo de aniversário, sentou-se ao chão e, entre as pernas de Ludmila, pegou-lhe o braço e esticou como um tapete. Janette ainda acalmava a pulsação de Ludmila quando a agulha penetrou sua epiderme, atingindo uma ansiosa veia. Como um deslize, a heroína confundiu-se ao seu sangue limpo e em poucos segundos seu coração acelerou, um guepardo ao céu aberto, um céu de vários sóis cujo calor invadia todo o corpo da adolescente. A euforia imediata chega como uma locomotiva, Janette a beija na clavícula esquerda, desce à cintura, novamente usa os dedos para acalmá-la, sabe que não é preciso, mas insiste em seu desejo e Ludmila ludibriada morde o lábio inferior e tem a plena certeza de estar n’outra galáxia. Em poucos minutos, retorna do nirvana e, ao perceber Janette mergulhada em sua vagina, empurra-lhe a testa com os punhos; um repentino mal-estar assola Ludmila e, aos prantos, sente-se como vomitasse ao revés. Tenta manter-se em pé, mas os joelhos parecem duas molas e desfalecem, cai junto a Janette que lambe o chão em círculos. A dois metros, Lou continua sua interpretação, agora sem roupas, a sala ziguezagueia e Ludmila grita desesperadamente, até uma tapa fechar sua boca. Zonza, da droga e do golpe, deixa as costas deitarem no piso frio e ali fica, lutando contra o estômago, o esôfago em chamas.

A serenidade pós-terremoto se faz presente; Janette dorme de boca aberta no pé do sofá, Lou calou-se, enfim, e beija um homem cujo umbigo se assemelha a um pneu, também ele se mantém em silêncio. Ludmila chora um riso mudo, os braços finos repousam paralelos, queria levantar e ir pra casa, mas a falta de força e de sentidos a apagam suavemente. Acorda uma hora depois, talvez menos, alguém toca, no violão, uma melodia conhecida. Uma voz rouca surge, Ludmila reconhece de imediato, It’s all over, baby blue, é o homem do umbigo-pneu que canta com um cigarro na boca. Tentava assobiar, mas o cigarro o impede e, entre o cigarro e o assobio, escolhe o primeiro, superando a ausência do segundo. Antes da estrofe final, um estrondo grave vem da rua; alguém bate o carro numa árvore. A motorista sai sorrindo, como se atravessasse o ponto de chegada, é alguém do prédio ao lado, Lou manda um beijo da varanda e ela mostra o dedo com vigor. Ludmila sorrir com apenas um lado da boca e olha o relógio: 04:54 da manhã, às 14:00 precisaria estar na redação, era domingo. Mal se despediu, pegou a bolsa quase vazia, na escada lembrou-se do casaco, voltou, Janette o segurava com um olhar de arrependimento. Pegou rapidamente e passou novamente pela porta que por muito tempo entraria. As pernas caminhavam trêmulas; doíam o pescoço, as costelas. Chegou no apartamento, despiu-se e, como estava, se jogou no colchão úmido com a intenção de recuperar as energias para mais um dia de trabalho no maldito jornal. Não pregou os olhos.

domingo, 28 de março de 2010

dolor.

Amortecer a vida. Ao mergulhar na literatura, interrompo o gatilho eruptivo da relação humana que, como um incansável carrapato, não desgruda e suga-me o resto de força e vitalidade que ainda mantenho sob os ombros. A comunicação é, definitivamente, fundamental ao robustecer terreno, que não condiz, porém, aos berros jornalísticos, cuspidas conjugais e ao sangue esparramado em cada metro cúbico do planeta-granada. Alcancei um estágio particular em que esquivar-me das vozes intermináveis me transmite uma serenidade inigualável. Minha anti-sociabilidade cresce diariamente como uma barba não feita, e a gilete largada no canto da pia poderá ter uma função mais produtiva daqui pra frente. Não, não matarei um ser sequer, apesar dos olhos de isopor. Apenas deixarei na humanidade marcas inconfundíveis cujo pólen difundirei, como um vento independente, entre os operários dos grandes e pequenos feitos. E não o farei por heroísmo ou pretensão parecida, mas pela necessidade que observo em cada alma de obter, ainda aqui, nesta encarnação, uma vacina que abrande os transtornos de um mundo propagandista, estelionatário.

Acaba a tinta.

Não adianta. Incrementar a escrita, chamar atenção por metáforas elogiáveis, nada preencherá o lago vazio que perdura em minha mente. Não escreverei livro algum e, mesmo se o fizesse, para quem escreveria? Quem leria os psicóticos lapsos do meu cérebro, quem, fora eu e meus vultos? Sou a sombra da minha própria sombra. Ao menos ela, minha sombra-corpo, tem um formato definido e rígido. Descobri, ainda há pouco, a beleza de um trovão intenso; todos tendem a se reunir, ficar próximos pelo medo da percussão de ruídos. Há uma hora desprezei a existência humana, agora rezo aos trovões; não cessem. Ninguém ao lado. Alexandra dorme, n’outra cidade. Quão perto, quão distante, as pedras do asfalto - dormem elas também. E é quando tudo fecha os olhos, quando menos ouço pulsações, que mais tremo como as ramificações de um raio. Recife desafoga o peito, mas mantém-se forno. A chuva rascunha um clima ameno. Risca, joga no lixo. Como fiz. O mormaço do quarto apedreja. Caio no caixão de cerâmica, sinto o suor se mover; o chão, o cão, o vão receptor. Fujo à sala. Nossa almofada me sorri. Está fria e apaga de mim as brasas.

Mi mundo es vacío si no tengo su sonrisa.

sábado, 20 de março de 2010

it's happening

sempre chega o dia
onde a odisséia festiva dos homens é desativada
como uma bomba-relógio que esquece da existência do tempo
a sentimentalidade insana e controversa
regressa
aos lares das perfeitas famílias mutiladas
não há membros completos
o filho não mais ri ao pai
dois irmãos vagam de bocas costuradas
a mãe trai
todos eles, criminosos que o sistema não pune,
lamentarão infinitamente suas atitudes
e o peso cairá em seus ombros como um trator ribanceira abaixo
um viaduto de dor partido ao meio, onde também me encaixo.

consigo ver
antes que anoiteça
a ferocidade das próximas horas
pressagio aquele destino inevitável dos errantes
desço à praça em busca de calma
minhas chagas perpetuam a insônia
há meses não sonho, nem pesadelo
ninguém se apercebe
restaram os venais
amontoados num porão de afagos pré-pagos
que se desfaz, caso não traga lucros
o perito oculta
a campainha silencia
a informação esconde as evidências de uma conclusão indesejável
e o cigarro do cotidiano apaga-se com maestria
antes que amanheça
desejo um momento de veludo, macio e sereno, antes da guilhotina irreparável.

a praça atenua o tormento.

o hálito de estômago vazio me lembra
a fome é impaciente, como eu
subo as escadas no ritmo solar
todas as portas de todos os corredores estão entreabertas
um rottweiler rói o fêmur de seu antigo dono
no nono andar
o sangue da senhora do 1003 escorre até onde piso
chego, décimo primeiro, meu último esconderijo
um antílope descansa em meu sofá
seu olhar virulento é como uma expulsão
apenas apanho a carteira, por força do hábito
e sento para descansar
ao lado do leão.

amanhã estarei longe, mais perto disso tudo
uma jornada termina, outra tem início
o universo é rotativo, rotineiro roteiro adverso
e por já saber o desfecho, por precaução me despeço.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

struggle

teimas quilometrar o amor
enquanto o tango dos dias
adverte-nos em chiados
o manto da liberdade rasgando-se linha a linha
e meus olhos de cerâmica, dois pedintes, zelam secretamente
todos os nodosos traçados
por quais caminharemos até os ossos
não há vagas aos sorrisos infinitos
esculpiremos cada dia nossa auto-imagem
para nos lembrar do fandango longíquo
como a calma vivida em Ponte de Sor
onde a fuligem urbana esbarra numa espécie de escudo invisível.


teus lábios xilogravados em meu tronco
como fosse hoje,
recordo,
numa tela de gesso
embaixo da velha nogueira
que presenciou, tantas vezes, nossa agitação hormonal
em harmonia
com Deus
com os demais
com o mundo habitado por zumbis
a memória lateja
um aeroporto de saudades alojado em mim.

ponho o vinil riscado
e ele canta tua presença pela casa
amanhã nos reencontraremos
decoro frases a serem ditas
ao pé do ouvido
e temo você não gostar
e temo por mim duvidar
se é realmente isso que nos fará conviver melhor
sem tanto vermelho no rosto
como a inércia da velhice.

são quatro e quinze da manhã
e o travesseiro frio não adormece
junto ao meus olhos vidrados na janela
de onde a cidade parece estática
exceto o oceano.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

a passagem

A cada passo da minha patrulha solitária, relia os ensinamentos apreendidos durante a permanência em Recife, onde o sol enegreceu a vista tantas vezes e pela última. Uma rua em aclive me avista e temo olhar através da nuca, mas algo além de mim fez-me virar; percebo não mais estar na capital pernambucana, estou acima, diante das nuvens que um dia, dois, me prenderam em casa. Retorno a cabeça à rua e ela me fita, flutuante, como um escorrego ao revés, e nada, nem mesmo a película, me faria hesitar por um instante, dois. Sinto um ar salubre em meus pés. Um protótipo de sorriso move minhas faces ensopadas, mas o receio bravateia em meu estômago, ou no lugar onde antigamente ele permanecia. O avião aterrissa. Sentimento de nostalgia invade-me o espírito e, instantaneamente, o cultivo de uma vida inteira floresce perante meus olhos. Amigos de seis meses, amores infinitos, lares cruciformes, o pouco dinheiro arrecadado, as veias abertas, a escassez de paz; tudo à tona. Minha estadia terrestre, o expresso dos meus dias como flashbacks de um filme mal-escrito, porém coerente. Vejo uma fatia de meu pai, correspondente ao tempo unido em casa. Enxergo a universidade, seus jardins, meus professores, livros. Uma cena de La Lengua de Las Mariposas, trechos das músicas que tanto aliviaram o enjoo. Meus vinte e um anos em minutos, um curta-metragem.

Última lembrança, a sombra de uma faca. E ainda a sinto penetrando meu dorso, como uma angústia repentina. Sem dúvidas Orlando, cuja vida destruí três vezes sem notar movimento algum. É raro tatear a realidade nas coisas. Quanto mais me apeguei às feições, menos pulsei vida, como se a carne levasse ao árduo caminho do arrependimento. Queria pedi-lo, ainda pela boca, sinceras e infinitas desculpas, mas não há mais corpo errante, resta-me apenas essa imagem de mim mesmo, o resto do que eu um dia fui. Mesmo livre da carcaça, dói-me algo, superior à existência passada, como se uma dor futura fosse pressentida. De longe, braços em forma de galhos perambulam agonizantes; eu não estou só. O som se torna cada vez mais claro, gritos.

A Terra é um exercício.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

a long song

son house mantinha a voz
a vitrola iluminada de azul
"you know, love, love is a worried old heart disease"
incontestável
estiquei-me ao violão debruçado na parede cinzenta
um homem nasce da madeira
e canta como um pássaro no descanso de sua árvore
os dedos não mais são meus, são do homem
e o assisto com arrepios na nuca
desfilando no vendaval de acordes
os pés descalços, em pedais invisíveis,
atraem a atenção das formigas
visão privilegiada
tentei me abaixar, mas estava imóvel
só via
o homem golpeando as cordas com um afeto agressivo
enquanto as suas trepidavam no interior
calara-se a vitrola
assistia comigo o quadro em criação
e por mais alguns minutos a vida encontrou-se em resumo

surdo de melodias que valem um movimento de translação, sinto saudades do homem
do instrumento-ser cuja sonoridade me fez bater asas aos anos 60
um nevoeiro desagasalha a rua há dias
falta-me ânimo, sobra falta
para onde voara o artista?
talvez embasbacasse jovens celibatárias que vão em busca de corpo nos bares da lua
quem sabe não toca para uma platéia planetária
aqui é que não está, o artista
foi-se junto aos meus anos
deixou-me rugas e um bisturi dentro do peito
esquecido
um sumiço sutil e brutal
como há de ser a morte da alegria
entre os dias
quase sem perceber.

pela manhã pensei tê-lo reencontrado, quando abracei Marieta debaixo da adequada chuva
e senti seu busto febril me esquentar dos pés à cabeça
pela manhã.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

à/a tarde

Distraí as crianças enquanto Neuza retirava de cima da mesa os pratos quase limpos. A comida realmente havia sido mínima, mas a fome arrasadora dos pequenos contribuiu com mais ímpeto à exterminação de qualquer indício dos grãos de arroz e feijão ali previamente postados. Até as moscas pareceram ter sido ingeridas, elas que sempre buscavam em nossos restos a nutrição necessária para durar um dia mais ou dois. Nenhum zumbido ouvia-se, só o de Neuza, um assobio melancólico cuja fraqueza intraduzível me fez querer tapar os ouvidos. Os gritos das crianças fizeram o papel dos meus dedos, quase cochilei com Luca pulando no meu colo, a tarde teimava em não anoitecer e aquela claridade insólita impossibilitava-me de mergulhar na liberdade do sono. Levantei do sofá, um oceano de formigas alastrando-se em minha perna, manquei ao quintal e vi Boris, dormindo tão tranqüilamente que desejei deitar-me ao seu lado, ali mesmo, na areia mijada, e dividindo a suavidade de um sonho canino, transformar-me, por que não, em um labrador, como ele. Eu latiria o dia inteiro.

Não quis perturbá-lo; um animal respeita o espaço do outro. Pensei na minha cama, desforrada como sempre, e senti uma náusea que me dificultou a respiração. Os pulmões pareciam encharcados de frituras, deixei as pálpebras despencarem e contei até dez. E mais dez. Há sete dias estava sóbrio, mais ébrio que nunca, e salivei à imagem de uma vodca qualquer que a mente me trouxera subitamente. Minha dívida no Bar do Fred era vergonhosa e eu não conhecia boteco algum onde se permitia fiado. Ainda mais para um estranho com minha aparência, se é que ainda a tenho. Entrei no banheiro e, sentado no vaso, ouvi Luca ou Léo, não consegui diferenciar. Berrava aos prantos por motivos que eu preferi nem imaginar. Neuza sobrepôs a voz e um silêncio pós-batalha instalou-se na casa. Não sei o que era mais angustiante: a mudez sofrida ou o barulho intermitente de uma felicidade enganosa. Lavei o rosto no intuito de arrancar os olhos, os sentidos, a consciência que um dia me metamorfoseou a este nível. A água limpa, mas não cura. Mantenho-me em pé, ou o chão me mantém, e tento amiudar a dor que vaza do olhar em forma de rio. Recordo dos tempos lúdicos em Niterói, onde a vida era um deslize e Neuza me jurou fidelidade eterna.

Cá estamos nós.