sábado, 30 de outubro de 2010

retorno.

O avião manteve-se em espantoso equilíbrio mesmo entre as nuvens, ondeava suavemente como o corpo que se remexe ao mais calmo dos sonos, meus pés aos poucos deixava o chão do transporte em liberdade e os pedais do nervosismo perderam a constância, dando lugar à serena estaticidade. Reaberto o céu, avistei o sol em sua desistência diária, tão próximo que tocá-lo passou-me em pensamento como possibilidade. Eram cinco e trinta e quatro, em menos de uma hora aterrissaríamos em Recife, papai se distraía com um filme de Tarkovsky em seu recente DVD portátil, tinha o estranho costume de, quando perguntado sobre o que estava assistindo ou lendo, respondia mencionando o escritor, diretor, sem jamais dizer o nome da obra. “Um filme de Kurosawa, o último de Saramago”, e retornava a atenção às histórias que tanto idolatrava. Evitei perguntar o título, então, encostando a cabeça na esperança de um cochilo abreviar a chegada, o chope na praia, o cheiro de mar.

Despertei com a voz do comandante, a maioria das pessoas ao redor tinha no rosto a expressão de quem retorna da guerra, a turbulenta comunhão entre esgotamento e alívio, dor e paz. Papai assim estava. Um pouco assustado, desejei um espelho, provar que minha felicidade não tinha olheiras. Adentrei num obscuro paul de pensamentos naqueles últimos instantes de viagem, a distonia mental impossibilitou-me até de perceber o choque das rodas no solo, de olhos abertos eu não enxergava nada além de um abissal oceano de dúvidas e receios. O que me traria a volta? Novos projetos, antigas fissuras, para onde apontar os dedos cansados de se fecharem em murro? Reintegrar-se à egrégia aura acadêmica, mais seis meses, suportar o campus de hematófagos comunicadores sociais, o jornalismo flagicioso encoberto pela luz superficial de homens-fuzis. Liquidificado pelas náuseas do espírito, desci do avião ao lado do velho, puto por ter de interromper o filme já em seu desfecho. Meu irmão nos aguardava com a esposa, a frieza na recepção calorosa era visível, mesmo assim senti-me confortado. O habitual congestionamento na Mascarenhas de Moraes reforçava a certeza de estar novamente no aconchego uterino, o ar sem ar, desincronização dos semáforos, eu em trânsito, mas definitivamente em mim.

4 comentários:

Alexa disse...

Cada dia melhor, você sabe disso.

Anônimo disse...

Lindooooooooo, poeta.

Márcio Danilo Almeida disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Márcio Danilo Almeida disse...

Bom demais, cara. Deu até pra imaginar as coisas acontecendo...

Abraço.