sexta-feira, 26 de maio de 2017

retornar (mas a vida é maior que o foguete caído)

quando volto sinto
a loucura
essas vozes banhadas
de nada
vazio, estranha estrada
que leva a uma rua
onde ninguém cresce
sento ao lado dos inimigos
um dia desejaram minha morte
hoje engolem minha presença
quantas balas atiram sorrisos falsos
todos os dias subo e desço
a mesma escada
todas as horas sinto fome
sede de viver longe daqui
cansado dos mesmos homens
cansado das mesmas barbas
o repetido bater dos teclados
dos operários loucos por números
refugio-me e respiro meu ar
meus motivos para levantar
preciso fortalecer meus músculos
e construir minha casa.

garoa lenta escorre sobre a cidade
a tarde caminha nas calçadas
estudo o silêncio e o desejo
dentro de mim
querer, ansiar
morder o lábio
apertar os dedos
te amar, rasgada
costurar o beijo
lugar nenhum do mundo
ser tão lindo como a calma
que transpira cor de rosa
das faces apaixonadas
a onda que nunca
conseguimos domar.

quinta-feira, 11 de maio de 2017

post

deixo minhas botas marcadas
pelos pneus do asfalto
no canteiro da porta de casa
amacio os calos
desatarraxo os botões da camisa
na vila passam vendedores
e sabiás em busca de sombras
repousarão, um dia
no coração dos homens
quando soubermos cultivar
galhos sem nos ferir
ouço o pipilar dos veículos de carga
se fechar os olhos posso vê-los
deslizar sobre as imperfeições da BR
vivos, levando ao interior
pedaços da cidade
enquanto desacelero, pé no freio
e leio as sutilezas do dia
as fotos na carteira
bilhetes que não jogo fora
objetos que explicam o mundo
da minha vida
meu museu serão minhas palavras
e você a principal peça
exposta em cada texto
cada miúdo pensamento transcrito
anoto-os para deixá-los eternos
pois um dia, descalço do corpo
minha mão
não mais
escre-
ve-
rá.

cume invertido.

 
Os conflitos espirituais se encarnam e recobram o abrigo miserável e magnífico do coração humano. Ninguém está resolvido. Mas todos estão transfigurados. 

O Mito de Sísifo, Albert Camus



atrás da porta
há sempre um lobo
pernas cruzadas, olhar amigo
manipulando seu maxilar
enquanto mastiga, mastiga, mastiga
às vezes me surpreende
em cima dos móveis
escalando paredes
no trabalho
nos telhados avermelhados
dos antigos prédios
já o vi em Recife
na noite de Kadikoy
seu nome é conhecido
pode ser lido nos livros
não nestes versos

além da cabeça
há sempre um lodo
negrume escorregadio, cheiro forte
passeio e me lambuzo
perene, de costas para o sol
quantos homens já não caíram
quantos ainda irão adiar a luz
somos ineptos
ou conscientes do nosso mal?
versos, palavras, são navalhas
só compreende quem se corta
e mete o dedo na busca
de encontrar entre as vísceras
nossa verdadeira face
nossa alma de carne e osso.