domingo, 28 de fevereiro de 2010

struggle

teimas quilometrar o amor
enquanto o tango dos dias
adverte-nos em chiados
o manto da liberdade rasgando-se linha a linha
e meus olhos de cerâmica, dois pedintes, zelam secretamente
todos os nodosos traçados
por quais caminharemos até os ossos
não há vagas aos sorrisos infinitos
esculpiremos cada dia nossa auto-imagem
para nos lembrar do fandango longíquo
como a calma vivida em Ponte de Sor
onde a fuligem urbana esbarra numa espécie de escudo invisível.


teus lábios xilogravados em meu tronco
como fosse hoje,
recordo,
numa tela de gesso
embaixo da velha nogueira
que presenciou, tantas vezes, nossa agitação hormonal
em harmonia
com Deus
com os demais
com o mundo habitado por zumbis
a memória lateja
um aeroporto de saudades alojado em mim.

ponho o vinil riscado
e ele canta tua presença pela casa
amanhã nos reencontraremos
decoro frases a serem ditas
ao pé do ouvido
e temo você não gostar
e temo por mim duvidar
se é realmente isso que nos fará conviver melhor
sem tanto vermelho no rosto
como a inércia da velhice.

são quatro e quinze da manhã
e o travesseiro frio não adormece
junto ao meus olhos vidrados na janela
de onde a cidade parece estática
exceto o oceano.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

a passagem

A cada passo da minha patrulha solitária, relia os ensinamentos apreendidos durante a permanência em Recife, onde o sol enegreceu a vista tantas vezes e pela última. Uma rua em aclive me avista e temo olhar através da nuca, mas algo além de mim fez-me virar; percebo não mais estar na capital pernambucana, estou acima, diante das nuvens que um dia, dois, me prenderam em casa. Retorno a cabeça à rua e ela me fita, flutuante, como um escorrego ao revés, e nada, nem mesmo a película, me faria hesitar por um instante, dois. Sinto um ar salubre em meus pés. Um protótipo de sorriso move minhas faces ensopadas, mas o receio bravateia em meu estômago, ou no lugar onde antigamente ele permanecia. O avião aterrissa. Sentimento de nostalgia invade-me o espírito e, instantaneamente, o cultivo de uma vida inteira floresce perante meus olhos. Amigos de seis meses, amores infinitos, lares cruciformes, o pouco dinheiro arrecadado, as veias abertas, a escassez de paz; tudo à tona. Minha estadia terrestre, o expresso dos meus dias como flashbacks de um filme mal-escrito, porém coerente. Vejo uma fatia de meu pai, correspondente ao tempo unido em casa. Enxergo a universidade, seus jardins, meus professores, livros. Uma cena de La Lengua de Las Mariposas, trechos das músicas que tanto aliviaram o enjoo. Meus vinte e um anos em minutos, um curta-metragem.

Última lembrança, a sombra de uma faca. E ainda a sinto penetrando meu dorso, como uma angústia repentina. Sem dúvidas Orlando, cuja vida destruí três vezes sem notar movimento algum. É raro tatear a realidade nas coisas. Quanto mais me apeguei às feições, menos pulsei vida, como se a carne levasse ao árduo caminho do arrependimento. Queria pedi-lo, ainda pela boca, sinceras e infinitas desculpas, mas não há mais corpo errante, resta-me apenas essa imagem de mim mesmo, o resto do que eu um dia fui. Mesmo livre da carcaça, dói-me algo, superior à existência passada, como se uma dor futura fosse pressentida. De longe, braços em forma de galhos perambulam agonizantes; eu não estou só. O som se torna cada vez mais claro, gritos.

A Terra é um exercício.