terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

a passagem

A cada passo da minha patrulha solitária, relia os ensinamentos apreendidos durante a permanência em Recife, onde o sol enegreceu a vista tantas vezes e pela última. Uma rua em aclive me avista e temo olhar através da nuca, mas algo além de mim fez-me virar; percebo não mais estar na capital pernambucana, estou acima, diante das nuvens que um dia, dois, me prenderam em casa. Retorno a cabeça à rua e ela me fita, flutuante, como um escorrego ao revés, e nada, nem mesmo a película, me faria hesitar por um instante, dois. Sinto um ar salubre em meus pés. Um protótipo de sorriso move minhas faces ensopadas, mas o receio bravateia em meu estômago, ou no lugar onde antigamente ele permanecia. O avião aterrissa. Sentimento de nostalgia invade-me o espírito e, instantaneamente, o cultivo de uma vida inteira floresce perante meus olhos. Amigos de seis meses, amores infinitos, lares cruciformes, o pouco dinheiro arrecadado, as veias abertas, a escassez de paz; tudo à tona. Minha estadia terrestre, o expresso dos meus dias como flashbacks de um filme mal-escrito, porém coerente. Vejo uma fatia de meu pai, correspondente ao tempo unido em casa. Enxergo a universidade, seus jardins, meus professores, livros. Uma cena de La Lengua de Las Mariposas, trechos das músicas que tanto aliviaram o enjoo. Meus vinte e um anos em minutos, um curta-metragem.

Última lembrança, a sombra de uma faca. E ainda a sinto penetrando meu dorso, como uma angústia repentina. Sem dúvidas Orlando, cuja vida destruí três vezes sem notar movimento algum. É raro tatear a realidade nas coisas. Quanto mais me apeguei às feições, menos pulsei vida, como se a carne levasse ao árduo caminho do arrependimento. Queria pedi-lo, ainda pela boca, sinceras e infinitas desculpas, mas não há mais corpo errante, resta-me apenas essa imagem de mim mesmo, o resto do que eu um dia fui. Mesmo livre da carcaça, dói-me algo, superior à existência passada, como se uma dor futura fosse pressentida. De longe, braços em forma de galhos perambulam agonizantes; eu não estou só. O som se torna cada vez mais claro, gritos.

A Terra é um exercício.

Um comentário:

Afense disse...

Muito bom ein cabrón?
Passagem dolorosa a desse sujeito, que tanto mal fez a Orlando sem perceber.
É por isso que eu ainda digo que a vida é uma noite de sono e a morte é um pesadelo.

Enfim, xêro no bumbum!
e continue escrevendo aê!