terça-feira, 8 de junho de 2010

frag.

O apartamento dialoga comigo. Pede faxina há duas semanas, desde a última vez que Mônica prestou seus serviços e retirou alguns gramas de grude dos azulejos, imunizando-os com uma cera de cheiro angustiante que compete, pau a pau, com os trajes de um gari após um longo dia de trabalho. Certos produtos de limpeza são definitivamente sarcásticos. Parasito pela geladeira em busca de algo que tranque a boca do estômago, cujos resmungos parecem sem fim, quando a mente envia a informação que não se tem mais nada a fazer. Comer é paliativo à inércia, intransponível como uma cordilheira infinita, nestes dias. Pequeno alento ao alpinista trêmulo, ainda na metade do caminho, sem forças, como se escalasse pela décima vez no mesmo dia. Não há tantas opções, minha negligência interfere em casa, fora, dentro do refrigerador. Menosprezei o salubre zelo sempre presente em minha personalidade, por mais tóxica e barulhenta nas horas dos torpedos unidirecionais. Nunca fui de imitar mudo, aguentar pressões alheias de lábios cerrados, a cada explosão estrangeira minha belicosidade jorrava granadas para todos os lados, não distinguindo o inimigo do aliado, ou do indiferente, como em toda guerra. Com a brancura na barba, e depois nos remanescentes fios da cabeça, moderei o ímpeto ao combate. Continuei zeloso, de menino até hoje, órfão, mas hoje, hoje me vejo despedaçado, procuro os detritos de meus antigos hábitos e nada vejo. Uma catarata de lembranças mescladas mensura a sobra, o quanto daquele eu longínquo ainda dorme em meu espírito; são faíscas, pequeninos blocos de temperamentos, opiniões, visões de mundo. Meu pavor de grandes embarcações é genuinamente meu? Quantas apreciações e desprezos foram formados com o auxílio de sentimentos externos aos que mantenho? Comecei a fumar aos trinta e nove anos. Fui pai antes de viciar-me no tabaco, grande exemplo, e meu primogênito diz, ou costumava, ser culpa dele, cuja vinda ao mundo teria influenciado tal hábito. Como estará Alfonso, céus, perdi também as contas dos anos, creio que faz cinco sem vê-lo, abraçá-lo tapeando as asas das costas, atitude tão usual de um pai. Noto esta febrícula repentina sempre que penso em meus filhos, um ardor sutil mas sufocante, o tempo realmente passou, o meu, ou daquele em que eu estava habituado a ser, comparo-me a determinado veículo cujo combustível não mais se utiliza. Em extinção, fadado a um fim silencioso, despercebido, num distante ferro-velho putrefato, onde apenas as ferrugens indiciam de que eram feitos os irreconhecíveis objetos ali entulhados.

Um comentário:

Anônimo disse...

Lindo e.........triste.
Bjs ao meu poeta.
Madre