terça-feira, 5 de janeiro de 2010

à/a tarde

Distraí as crianças enquanto Neuza retirava de cima da mesa os pratos quase limpos. A comida realmente havia sido mínima, mas a fome arrasadora dos pequenos contribuiu com mais ímpeto à exterminação de qualquer indício dos grãos de arroz e feijão ali previamente postados. Até as moscas pareceram ter sido ingeridas, elas que sempre buscavam em nossos restos a nutrição necessária para durar um dia mais ou dois. Nenhum zumbido ouvia-se, só o de Neuza, um assobio melancólico cuja fraqueza intraduzível me fez querer tapar os ouvidos. Os gritos das crianças fizeram o papel dos meus dedos, quase cochilei com Luca pulando no meu colo, a tarde teimava em não anoitecer e aquela claridade insólita impossibilitava-me de mergulhar na liberdade do sono. Levantei do sofá, um oceano de formigas alastrando-se em minha perna, manquei ao quintal e vi Boris, dormindo tão tranqüilamente que desejei deitar-me ao seu lado, ali mesmo, na areia mijada, e dividindo a suavidade de um sonho canino, transformar-me, por que não, em um labrador, como ele. Eu latiria o dia inteiro.

Não quis perturbá-lo; um animal respeita o espaço do outro. Pensei na minha cama, desforrada como sempre, e senti uma náusea que me dificultou a respiração. Os pulmões pareciam encharcados de frituras, deixei as pálpebras despencarem e contei até dez. E mais dez. Há sete dias estava sóbrio, mais ébrio que nunca, e salivei à imagem de uma vodca qualquer que a mente me trouxera subitamente. Minha dívida no Bar do Fred era vergonhosa e eu não conhecia boteco algum onde se permitia fiado. Ainda mais para um estranho com minha aparência, se é que ainda a tenho. Entrei no banheiro e, sentado no vaso, ouvi Luca ou Léo, não consegui diferenciar. Berrava aos prantos por motivos que eu preferi nem imaginar. Neuza sobrepôs a voz e um silêncio pós-batalha instalou-se na casa. Não sei o que era mais angustiante: a mudez sofrida ou o barulho intermitente de uma felicidade enganosa. Lavei o rosto no intuito de arrancar os olhos, os sentidos, a consciência que um dia me metamorfoseou a este nível. A água limpa, mas não cura. Mantenho-me em pé, ou o chão me mantém, e tento amiudar a dor que vaza do olhar em forma de rio. Recordo dos tempos lúdicos em Niterói, onde a vida era um deslize e Neuza me jurou fidelidade eterna.

Cá estamos nós.

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