sábado, 24 de abril de 2010

fragmento da obra futura - part I

Mastigávamos o vidro em cacos enquanto a madrugada, brilhante e oval, costurava em linhas brancas nossos quatro lábios num só. O gosto das lágrimas anteriores ainda salgava as línguas bailarinas que, de passo em passo, espantavam secreção e medo. Minha precipitada ereção guiou-nos à cama dos seus pais, cuja amplitude fez-me sentir, por um leve instante, como um patriarca, totalmente submisso aos poderes da princesa da casa. Fiz questão de manter os olhos abertos. Mais do que qualquer toque ou suspiro ao pé do ouvido, ver sua boca aberta, contrapondo-se às pálpebras grudadas, em completo silêncio e êxtase, me borbulhava as entranhas de maneira quase insuportável. Não demoramos mais de três minutos, não era necessário; quando a paixão alcança o fascínio, segundos eternizam e equivalem a anos vividos. Ainda me tendo em seu interior, Penny me encarava com um sorriso puro e descansado. Nascia em nós um resistente elo, um filho, éramos dois tijolos ligados pelo cimento na parede da vida. No final daquele onírico mês de maio, alugamos um quitinete onde nidificamos entre móveis mofados e sonhos de orvalho. Nosso simpósio diário edulcorava as horas, tão dilacerantes nos tempos individualistas; arranjamos trabalho em poucos dias, eu como produtor de um programa infantil de tevê, ela de assessora de imprensa num time de futebol em decadência, mas que pagava bem. A repetitiva certeza de que ao chegar ao apartamento aquele par de olhos verdes me receberia com um brilho fulminante minimizava qualquer indício de frustração durante o dia. Assim dialoguei com a vida por pouco mais de cinco meses. A erosão iniciou-se com as viagens. Penny não mais parava em casa, conheceu todo o país a trabalho. O país do futebol. Meu desgosto por esportes apenas aumentava com a constante distância. A perda do entusiasmo novamente, novamente predominou o maltrato da insônia na cama desabrigada. Quando retornava, Pennelope permanecia a maior parte do tempo quieta, tinha plena ciência do rumo que havíamos tomado por má sorte ou relutância do destino. Minha maior angústia era sermos, eu e ela, mais um exemplo de que por mais abrasador e monstruoso que seja o amor, fatores externos têm a capacidade de reduzi-lo a nostálgicas memórias de um tempo irrecuperável.

Uma oferta de emprego tomou coragem por nós e pôs fim à doçura há muito perdida. Retornei ao meu antigo apartamento, mas deixei no quitinete as orelhas, o nariz e a boca. O assobio dos pássaros era o mesmo, o velho uísque tinha seu hálito. O cotidiano mais uma vez um ringue cujos combatentes se ferem, algumas vezes, sem perceber. Inerme, tornei-me alvo dos golpes alheios. Em 29 de novembro de 2008, fui demitido pela terceira vez em minha história. Entregue, rendido. O pressuposto perfeito ao suicídio, lento ou imediato, dependente da força que ainda sobra. As inúmeras possibilidades rodeavam minhas ideias, como um periclitante redemoinho cuja sina inalterável é aniquilar. Cheguei próximo a ingerir uma combinação fatal de comprimidos. Por um pé, ou uma inclinação mais efetiva, não deixei o corpo cair em queda livre d’um edifício, uma filial da tevê. Mesmo coberto de lodo e saudade, a vida me parecia menos sofrida que o despreparo da morte. A glória da tortura, descobri mais tarde, é privilégio subestimado pelos homens que não enxergam a virtude de se ter uma foice incrustada no cérebro.

Um comentário:

Afense disse...

é por isso que Vinícius já definiu faz tempo a única certeza do amor: "que seja infinito enquanto dure".
É cacete!
hauhauhauahua

abraço cabrón!
roxedo o texto.