segunda-feira, 10 de outubro de 2016

por assim dizer,

V

Série de corpos em trânsito, a cafeteira gritando junto com a criança uniformizada, quantos dentes e cordas vocais dissonantes, na televisão notícias imaginadas no dia anterior, já sabiam da prisão do ex-presidente, outros satisfazem-se com alguns mortos (riem e batem na barriga como se saciados pelo sangue que escorre). Um filho controla um pai silencioso. Puxa com sua pequena força a manga dobrada da camisa do progenitor. O pai, estátua, assiste a vídeos no celular. Imagino como está o clima em Argel ou se os refugiados de Calais odeiam a hora do almoço como eu. Adoro me alimentar, mas odeio a hora do almoço. Tudo tão mecânico, hora de comer, hora de largar, hora de ficar em casa para não ser assaltado, estuprado. Não suporto ver as pessoas espremidas no terminal de ônibus: em blocos, encaixotadas pela necessidade de se locomover. Mas também gosto de algumas coisas. Como as luzes metropolitanas que pintam as ruas e nossas fotografias. Também não descarto sentar no primeiro degrau de uma escada e acender um cigarro. Os degraus sobre meus ombros, pés e vozes invisíveis e reais, suspirar a fumaça e brincar de vulcão.

VI

As mangas também se suicidam. Cansam-se. Observei hoje: como os humanos, vivem em grupos, aglutinadas nos galhos da mangueira. Algumas, nos dias de chuva, deixam-se escorrer suave e despencam no mais próximo chão. Outras partem na maturidade (como filhos adultos), viram suco ou são mordidas por morcegos.  As mangas nascem verdes, se amarelam, algumas são rosas, umas menores, outras imponentes. Será que sorriem ao sol? Será que morrem de medo? Desfrutam da insustentável beleza de cair. As mangas também se suicidam.

VII

Sobre viver: eterna tarde dentro de uma piscina onde lhe atiram móveis, pedaços de bolo, línguas, livros rabiscados, apólices de seguro, tarde quente que chove, neva e arde. Nas águas amenas, é possível que se encontre o amor. Sereno. A humanidade, cansada de tanto se afogar, sufoca nas águas amenas. É preciso nadar sem dar braçadas. Seguir a corrente que equilibra pulmões e coração. Mas haverá redemoinhos, reduzindo ilusões a areia. Ondas e pedras, preparem-se. Fechem a boca para não engolir água. Abram os olhos para não bater a cabeça. Desde dentro do útero, uma vida de umidades. A beleza é ser maior que nós mesmos, ou tentar. Quem se conforma, atrofia. Quem se levanta, vê o mundo além das bordas. Não se incomodam em ver tantas cercas? Portões, grades, janelas fechadas, cadeados, zíperes, cortinas, gavetas, gravatas. O mundo é um trem fatiando planícies. São as faíscas dos olhos da mulher amada que, na sua frente, voa pelo céu. Tanta vida a ser descoberta e perdemos tempo preocupados com a hora. Joguem fora os relógios: a vida não tem ponteiros.

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