segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Feliz Natal

Estreando na direção (de um longa), o ator Selton Mello faz de uma celebração natalina um primoroso estudo de personagens amargurados e aprisionados ao passado, contrapondo a suposta (e, talvez, imposta) alegria da data aos traumas e dores de uma família extremamente desestruturada. Com grandiosa sensibilidade, Mello alcança êxito em seu primeiro longa-metragem e se mostra um cineasta autoral e promissor.

O filme acompanha Caio (Leonardo Medeiros), um homem que busca, no natal, reconciliar-se com a família. Logo na abertura da produção Selton acerta ao retratar a profissão de seu personagem (narrativamente perfeita, a escolha de um ferro-velho como local de trabalho de Caio) com closes nos carros degradados, ferrugens e sujeira. Então Caio viaja à cidade grande com a esperança de reatar os laços afetivos com sua família. Ressalva para a tomada em que o cineasta mostra a estrada de dentro do ônibus, aparecendo simultâneamente um crucifixo no painel do transporte, o que simboliza a fé e/ou a esperança do personagem em relação àquela jornada.

Na festa, percebemos o distanciamento de Caio com os membros da família; alguns mais repressivos - como o pai (Lúcio Mauro) - e outros, porém, receptivos - caso da mãe (Darlene Glória) e do seu sobrinho Pedro (Fabrício Reis - valeu Laís por achar o nome pra mim) . O motivo desse mal-estar é, até então, implícito. O cineasta põe em cheque os valores de uma sociedade em que a compaixão e a solidariedade para com o próximo se fazem presentes apenas em datas comemorativas; tendo como seu maior exemplo o natal. Reparem como o cineasta expõe a contradição da data quando Fabiana (Graziella Moretto) - cunhada de Caio - distribui os presentes com uma alegria questionável e, ao mesmo tempo, Caio e seu irmão Theo discutem na escada da casa (e o segundo fato é, com certeza, o reflexo da realidade daquela família). E é como se ouvíssemos da boca do próprio diretor as palavras proferidas por Mércia ao questionar a celebração, chamando os convidados de aproveitadores, sanguessugas e vampiros (cena esta que tem um belo desfecho quando a câmera enfoca os cabelos brancos de Mércia desmaiada no banheiro, ressaltando a inflexibilidade do tempo).

A direção de arte - elaborada por Renata Pinheiro - representa fielmente a situação decadente em que se encontram os habitantes daquele "lar". Notem que os espelhos da casa são manchados, portas enferrujadas, paredes mofadas, a piscina suja, com folhas ao redor; não é assim tão longíqua a relação entre a casa da família com o ferro-velho em que Caio trabalha (e o estado da casa dos amigos de Caio também é deplorável). A fotografia, quase sempre escura e pesada, ilustra o sombrio estado emocional dos personagens. Detalhe para a belíssima tomada em que, após conversa com o irmão, Theo caminha e deixa a casa dos amigos. A câmera desfocada faz com que a silhueta de Theo lembre a de um alienígena, o que intensifica a idéia do distanciamento da relação entre os dois parentes.

O fato que mais me impressiona na produção, contudo, é como o roteiro utiliza-se de um instrumento fundamental - carro(s) - como guia para a melhor compreensão do espectador sobre o principal acontecimento envolvendo Caio. São diversas cenas em que carros estão ativamente presentes na narrativa: as crianças ganham carros de brinquedos na festa de natal; Caio hesita ao observar a velocidade de um veículo na rua; Caio observa um carro sendo consertado enquanto está na padaria e bruscamente deixa o estabelecimento; a inocente brincadeira de seu sobrinho ao dizer "verde...vermelho!", trocando as funções das cores no semáforo e, claro, o desfecho do filme, onde o carrinho de brinquedo pode ser observado na cômoda do quarto, ao lado dos remédios (Outro forte instrumento narrativo adotado por Selton. Observe como, na conversa com a mãe, Caio dá ênfase à importância de "tomar os remédios na dosagem certa", o que pode ser interligado ao final do filme). Outra maneira que o diretor usa para explicar os fatos é utilizar as aparições e visões tidas por Caio. Jamais tornando-as irreais ou exageradas, o estreante diretor acerta nestas aparições, desprezando os muitas vezes indevidos flashbacks.

Extraindo soberbas atuações de seu elenco (destaque especial para Leonardo Medeiros e Darlene Glória), Selton Mello cria uma esplêndida obra que analisa as relações humanas de forma sensível e verdadeira. O melhor filme nacional do ano, sem dúvida. Aguardo ansiosamente o próximo projeto deste que é um dos grandes atores de sua geração e, agora, um dos mais talentosos e promissores cineastas do país.

3 comentários:

Ardiles Bispo disse...

Congratulações ao seu ponto de vista.
Profundo e extremamente coerente.
Esse comentário deveria estar em panfletos na entrada do filme.

laís sampaio disse...

percepções sensoriais explica exatamente essa crítica do filme.
relatos minuciosos da possível (mesmo que ele diga que não) autobiografia do selton!

Anônimo disse...

tô com vergonha de postar